quarta-feira, 12 de junho de 2024

Vicissitudes pedagógicas de tempos idos, sentimentos de tristeza, de confortáveis lembranças e de esperança no futuro, tudo revivido num… funeral

Hoje mesmo soube do luto da minha muito estimada colega, Margarida Araújo, que não vi durante o 3º período, por estar a acompanhar o marido na sua longa doença, como tantas vezes fizera. Pessoa e Professora de armas, sempre muito doce com toda a gente, ela própria com um rosário de problemas de saúde de que nunca a ouvi queixar-se. Meticulosa e firme, ia dar as suas aulas, até quase à hora dos seus próprios internamentos, com a mala sempre pronta para seguir para os hospitais, regressava imediatamente após cada alta e era vê-la aplicada e entusiasta, sempre preocupada com cada aluno, para quem era de uma disponibilidade total.

Menos de meia hora antes do funeral cheguei à Capela de S. Brás, em Gualtar (Braga). Caminhei até ao pé da urna e demorei-me num abraço à Guida. Ao seu lado, uma bela mulher, ainda jovem, e grávida, esperava que a cumprimentasse, como fiz. Era a Sofia, filha da Margarida, de quem fui professor, nos idos de 1999/2000. Infelizmente, não a reconheci, embora a cara não me fosse desconhecida. Ela mesma me lembrou de quem sou e de algo que disse que nunca esqueceu: Numa aula em que explicava a formação do núcleo férrico do nosso planeta, matéria que então se dava no 10º ano, em «ciências da terra e da vida», eu tinha levado uma embalagem de granulado de cera (da que as senhoras usavam para depilação), um saquinho de pregos pequeninos (de cerca de 0,5 cm) e uma chávena de vidro «pyrex» transparente. Enchera a chávena da cera fria, espalhara sobre ela os preguinhos, agitara levemente e pedira aos alunos que imaginassem ali uma mistura razoavelmente homogénea (tal como era mais ou menos homogéneo o nosso planeta, antes de aquecer no seu interior, até à fusão, o que desencadeou fenómenos de diferenciação em zonas de densidades desiguais). A seguir, pus a aquecer a chávena com o conteúdo. A cera fundiu e os pregos, por acção da gravidade, caíram para o fundo, onde formaram uma camada, tal como aconteceu com o ferro e o níquel do núcleo terrestre. A Sofia disse que isto a marcou…

Notável é que a humilde e discreta Margarida nunca me disse, nem então nem depois, durante todos os anos que passaram, que eu tinha sido professor da sua filha. Soube-o hoje à tarde, no funeral do pai.

Logo após descida do defunto no túmulo, aproximei-me para me despedir de ambas, mãe e filha. A Sofia estava agora rodeada de três amigas: A Raquel, A Diana e a Rita, que pertenceram à mesma turma. A Sofia sorriu docemente, e teve energia para comentar a história da cera e dos pregos, de que as amigas se lembravam.

Deixei a todas o meu desejo de que o futuro lhes sorria, fiz uma carícia na barriga saliente da Sofia, referi com ternura a esperança que nunca morre e o futuro que é sempre amanhã, para os que vivem e para os que vão nascer. E despedi-me carinhosamente com o prémio de múltiplos sorrisos, à beira de uma sepultura.

José Batista d’Ascenção