sábado, 17 de dezembro de 2016

“Histórias” de Portugal

A saborosa leitura do livro “Episódios da História de Portugal, que não aconteceram bem assim…”, de Ricardo Raimundo, da editora Manuscrito, trouxe-me à memória a ironia e o sarcasmo com que um meu tio materno – o meu tio João que Deus haja, como (ainda) se diz na aldeia em que nasci – se referia à narração (salazarista) dos feitos heroicos da nossa História, que tanto me empolgavam, era eu aluno da “escola primária” e estava ele mobilizado para a guerra colonial, que cumpriu, e em que já tinha estado um outro seu irmão mais velho. Segundo dizia, “a história tem o nome com ela – é como a escrevem - e devia dizer-se «histórias» para poder corresponder às ideias das diferentes pessoas que a(s) podem escrever e contar”. De caminho, para animar a minha mãe, dizia-lhe que, pelo menos, quando eu crescesse (eu era o rapaz mais velho dos netos dos meus avós maternos) já não devia haver obrigatoriedade de seguir para África. Aconteceu como ele previu, embora não tivesse mais que a instrução primária e vivesse numa aldeia remota do interior isolado do país.
Voltando ao livro.
Começa ele por referir alguns “milagres” que a nossa “História” tornou “verdadeiros”, às vezes não passando da “invenção de um cronista” (pág. 32); e em todos os casos a posteriori por razões ou com intuitos determinados, fosse o “milagre de Ourique”, o “milagre das rosas” ou o “milagre que levou ao falhanço do atentado a D. João IV”.
De seguida revela factos que nunca aconteceram. Salva-se a honra filial de Afonso Henriques que, embora tendo combatido e vencido D. Teresa num “confronto militar e ideológico” (pág. 35), não confirma o dito do “filho que bate[u] na mãe”, agredindo-a e amaldiçoando-a, “uma invenção dos cónegos regrantes de Santa Cruz de Coimbra” (ibidem). E revela-se que Egas Moniz, enquanto aio de Afonso Henriques terá sido uma criação de um trovador da corte de D. Afonso III, trineto do próprio Egas Moniz por linha bastarda, desejoso de honrar o seu antepassado e de conseguir dessa forma projecção social, criando um cantar épico, a Gesta de Egas Moniz (pág. 40). A lenda pegou, e ficou. Também se demonstra que “o modo como Lisboa foi conquistada inviabiliza a acção decisiva que se atribui a Martim Moniz” (pág. 46), o qual não morreu entalado na porta do castelo durante o assalto decisivo… Do mesmo modo, a “história da coroação e do beija-mão do cadáver da rainha”, a que D. Pedro I teria obrigado os poderosos fidalgos de Portugal, no Mosteiro de Santa Clara, em Coimbra, “não passa de um mito” (pág. 50), uma fantasia que só apareceu mais tarde, em 1557, pela mão de um escritor castelhano, que “deu largas à imaginação para a exposição de cenas tétricas” (pág. 51). Também a história de Brites de Almeida, a padeira de Aljubarrota, pessoa real, cujos dados biográficos são interessantes, “é um mito” (pág. 55), não o sendo “o povo da região, que se insurgiu contra os castelhanos e os combateu” (ibidem). Outro mito é o da “Escola de Sagres”, uma vez que se sabe hoje que quer a dita escola quer “o objectivo do infante [D. Henrique] em formar homens capazes de sulcar os mares nunca existiram” (pág. 57). (…) “jamais o infante (…) pensaria em fundar uma academia, escola ou curso sobre a arte de navegar, uma vez que, (…) esta aprendia-se no convívio do mar, na prática do dia-a-dia, enriquecida durante as viagens.” (pág. 59) (…) nunca a matemática, se acaso chegou a ser ensinada na universidade, recebeu qualquer impulso da marinha” (…) (ibidem). Outra história nada verdadeira é a que quis fazer de D. Fernando o Infante Santo, "que nunca o foi nem o quis ser” (pág. 61), ele que várias vezes solicitou ao irmão a entrega de Ceuta e a sua consequente devolução à liberdade. (…) Não lhe passava pela cabeça que os irmãos preferissem Ceuta à sua vida” (pág. 62). No mesmo capítulo, na página 64, se demonstra como D. Henrique foi afinal um traidor indigno e interesseiro. Na última carta de D. Fernando (de 25 de Julho de 1442) nota-se “um misto de desilusão pelo comportamento de traição dos irmãos e a certeza de que a morte estava para breve: «sempre pensei ca antes da morte vos veria»” (pág. 65). Igualmente falsa é a “criação», no século XVI, das Cortes de Lamego de 1143. “A verdade é que as Cortes de Lamego de 1143 nunca existiram e o documento exarado com as suas deliberações era falso. Fora forjado no cartório de Alcobaça, com o intuito de demonstrar a ilegitimidade da soberania espanhola em Portugal e legitimar as pretensões ao trono dos Braganças” (pág. 74).
O capítulo III refere-se a frases que não existiram, que foram mal citadas ou que não foram ditas por quem se pensa. A título de exemplo, a frase “morro com a pátria”, atribuída a Camões é impossível que ele a tenha pronunciado na hora da morte, porquanto morreu de peste bubónica, doença que, nos seus últimos estádios, deixa o doente “prostrado, com febres altas, semi-inconsciente (…) e com tendência para afirmar coisas sem nexo” (pág. 82). Por outro lado, tendo morrido na miséria e “pestífero, não é plausível que mais alguém, a não ser entes queridos, estivesse à sua beira na agonia final” (pág. 83) para escutar e registar a frase. Com outras frases sonantes, atribuídas a personalidades históricas, passa-se outro tanto, mas não devo abusar das transcrições para não diminuir o interesse pelo livro, que o tem, realmente. Leia-o quem quiser saber mais…
O capítulo IV, o mais extenso, incide sobre factos mal contados, e começa com Viriato, que não foi quem se pensa e cuja história e ligação aos portugueses é, desde o seculo XIX, definida como mítica (pág. 115); passa por coisas tão diversas como a má interpretação da frase “Aqui nasceu Portugal” afixada na muralha de Guimarães ou pelo pinhal de Leiria de que D. Dinis não terá sido o semeador; ou pela bissexualidade de D. Pedro I, o apaixonado de D. Inês; ou pela ameaça do condestável Nuno Álvares Pereira em passar-se para a Espanha; e desmente que Portugal tenha sido o primeiro país a abolir a pena de morte; desmente também que Salazar tenha sido misógino e termina com a demonstração cabal de que a História de Portugal, desde Afonso I até meados do século XX é, em grande medida, um cortejo de horrores que contraria abundante e convincentemente a ideologia salazarista que apresentava Portugal como um país de brandos costumes. Pelo meio, neste e nos outros capítulos, há muito mais, tudo muito bem explicadinho, muito interessante, de tal modo que começando a ler o livro é difícil parar antes de o acabar.
Vale a pena. E, em minha opinião, Portugal e os portugueses não saem a perder.  

José Batista d’Ascenção

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