domingo, 7 de janeiro de 2018

Aqueles que partindo permanecem no íntimo de nós mesmos

Felizes os que na vida encontram quem lhes queira e faça bem sem que se descortine algum motivo especial para que isso aconteça. Eu também tive essa sorte: quando, no início da década de 80 do século passado chegava à universidade, em Coimbra, oriundo do interior profundo, metido comigo, e olhando à volta sem deslumbramentos, tão reconfortante como a amizade de uns quantos colegas de curso foi o carinho e protecção que logo senti em casa dos pais de uma querida amiga desde esses tempos, daquelas que o são para sempre. Refiro-me ao Senhor Hilário Figueiredo e à D. Elisa Rocha Assis, Figueiredo pelo lado do marido, que logo me «adoptaram», como fizeram com outros, ali vizinhos ou vindos de longe como eu.
O Senhor Hilário era um alentejano bem-disposto, de sorriso aberto, coração grande e gesto largo, incapaz de alimentar conversas sobre os defeitos de quem quer que fosse, na razão inversa das qualidades que sentia prazer em destacar. O gosto de sentar alguém à sua mesa, a amizade franca e a facilidade de conversar sobre quaisquer temas eram tão autênticos, envolventes e transbordantes que os convivas sentiam um à-vontade sereno e agradável e reconfortante a partilhar uma espécie de doce camaradagem. Para isso contribuía igualmente a D. Elisa, cozinheira de gabarito, muito atenta à mesa e ao prato dos comensais, que fartamente servia, acentuando sempre a frugalidade de cada um, mesmo quando já haviam sido servidos por ela segunda e terceira vez, como se adivinhasse quanto alimento pode caber na barriga de crianças em crescimento ou jovens de muita sustância. Então, quando chegavam as sobremesas, não havia glutão que não se desse por saciado.
Ao longo do curso, um grupo de seis colegas, três rapazes e três raparigas (a Cristina, a Teresinha, a Teresita, que o cancro nos roubou pouco depois da licenciatura, o Aires, o Licínio e eu – que saudades, queridos Amigos!) passámos a dar-nos bem e, aquando das provas de frequência e exames, combinávamos umas sabatinas, depois de cada um ter estudado sozinho as matérias, sendo que boa parte das sessões foram em cada da Cristina, ou seja, da D. Elisa e do Sr Hilário. Após horas de discussão das dúvidas de cada um, a maior parte das quais não eram comuns e por isso eram esclarecidas logo ali, por quem soubesse, para além do proveito do estudo e do prazer de estar juntos, nunca faltava a D. Elisa com os seus cuidados, fazendo-nos chegar tabuleiros bem recheados, à maneira de merenda ou ceia, se não descíamos nós, por insistência dela e do Sr Hilário, à mesa posta.
Por essas e por outras, muitas vezes me sentei à mesa destes meus amigos. Mas ali, o bom não era restrito às refeições. Eu era capaz de falar gratamente com aquele casal sobre qualquer assunto, de uma forma muito fluida e gratificante. E também podia ficar em silêncio sentindo o mesmo bem-estar, sem nenhuma contrariedade. Isso acontecia, por exemplo, quando ficava a ler os jornais, que, por sinal, eram exactamente os que eu gostava de ler, inteirando-me de notícias e reflexões pelo menor dispêndio.
Esses jornais morreram. Há anos morreu também o Sr Hilário, o que foi para mim uma perda imensa. Como precisava muito dele, esforcei-me por esquecer em que ano, mês e dia partiu e, quando voltei à sua casa, nunca referi a sua ausência, nem me demorei a senti-la, porque a D. Elisa, a Cristina, a minha querida amiga, sua filha, o marido dela, mais um amigo do peito que ganhei, e a filha destes, a Ana Rita, menina da idade do meu filho mais novo, fizeram sempre uma festa de cada uma das minhas visitas e estadias (não escrevo estadas…), sozinho ou com a minha mulher ou com a minha mulher e com os meus filhos. Naquela casa, em Santo António dos Olivais, em Coimbra, senti-me sempre invariavelmente muito bem, não sei se por ali poder ser profundamente igual a mim próprio e por me sentir tão estimado e acarinhado. A D. Elisa, então, tratava-me com uma veneração que, a meus olhos, nunca, em tempo algum, mereci. Com sinceridade, disse-lhe, mais que uma vez, que ela via em mim as qualidades que não tenho. E ela ignorava, simplesmente. Por via da sua casa, a minha estima alargara-se aos vizinhos próximos (à D. Fernanda e família, à D. Maria José e ao marido, o Sr Joaquim, à D. Rosa e ao seu marido, o Sr Manuel), pessoas bondosas que, penosamente, deixei de visitar. E ainda havia as crianças e jovens das suas casas, como o Huguito e a Raquel, a Belita e a Fernanda e a Manelinha, entre outros, que eram uma doçura e uma alegria, entrando e saindo respeitosamente mas sem cerimónia pela porta daqueles amigos, ora uns ora outros e por vezes todos.
Foram tempos. Agora, foi a vez de a D. Elisa partir. Sinto-me mais só. Tive sensação idêntica quando a minha avó materna morreu. A minha avó, como se dizia lá na aldeia, era minha mãe duas vezes e eu creio que era mais do que isso. A D. Elisa foi outra mãe que tive, já crescido.
Mas sou pessoa de sorte: pela insubstituível mãe que tenho e pelas outras mães que tive e que ninguém substituirá.
Guardo-as estremecidamente.
Obrigado. Para sempre.

José Batista d’Ascenção

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