sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Em setenta anos, como a língua evoluiu, «conho»!

Fonte da imagem - aqui.
Porque me dá para revisitações do tempo dos meus pais e avós, já longínquos (e na maioria ausentes) da memória dos (mais) jovens, li o livro «A Noite e a Madrugada», de Fernando Namora, recentemente posto à venda com o jornal «Público», em edição fac-símile do original de 1950.
Embora com a acção restrita à raia fronteiriça das Beiras, onde o vocabulário da zona, por força do isolamento (físico, geográfico, social e cultural) fez seus certos termos e expressões, fiquei impressionado com a quantidade de palavras que se despediram do léxico, por falta de uso, excepto pelos anciãos ainda lá residentes, esquecidos do mundo, e pela desertificação (humana) do território.
O contrabando era a fuga perigosa (já que os guardas não hesitavam em dar uso à «matrafusca») ao amanho da terra, «surribada» e «alqueivada» como necessário, à actividade (que podia ser «prantar arbes») nas «courelas» e à pastorícia (em que pastores e gado se recolhiam nas «malhadas»), cada qual no fito de «adregar» conseguir alívio da fome e da miséria. Alívio que não era suficiente, mesmo quando havia «poia» do forno e «fanega» de semeadura, se não se restringisse a ervas e frutos silvestres, como a «marouva». A violência era permanente e (por isso) banal, nas famílias e no convívio, no trabalho, nas ruas ou nas «bodegas», pontenciada pelas «canadas de vinho». E o crime também, não só o dos deserdados da fortuna, como, e mais doloso ainda, o dos poderosos sobre eles… Nalgumas cabanas, as portas fechavam à «tramela» e as condições não seriam muito diferentes das das «furdas» dos «cevados».
A caracterização física e psicológica das personagens retrata bem a condição humana e o ambiente social e político da altura, naquele meio específico (não tão diferente assim do do resto do país), pelo que a obra, além do valor literário, e do conteúdo ficcional, tem também interesse documental de um tempo, de um lugar e de uma linguagem.
O remate final faz-se com o velório do cadáver de um campónio, já velho e limitado (“que às vezes segurava a «quebradura» inchada do esforço”), mas de temperamento feroz («endemonhado») que, «espichado» no catre, vestido e calçado como nunca em vida (desde o dia do casamento), é alvo de hábeis artimanhas de um dos filhos, que o odeia (porque o pai o maltratou desde «rapazelho»), para lhe roubar as botas lustrosas de «calfe», antes de o colocarem no «esquife». O que consegue, iludindo os presentes com mestria, evitando que tão bom par de calçado fosse apodrecer com o corpo, de mais a mais andando ele descalço.
Com muitas outras palavras e expressões habituais naquele tempo e hoje sem uso, nem sequer «de ralo em ralo», a leitura do livro não é prejudicada por esse facto. E vale a pena. 

José Batista d’Ascenção

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