quarta-feira, 10 de março de 2021

Lombos de frango ou a desvalorização das palavras

Há dias fiquei surpreso por, na lista das compras, me mandarem incluir “lombinhos de frango”. Entrei em conflito cognitivo. Fui ao dicionário confirmar: lombo significa «costas; parte carnuda pegada à espinha dorsal; lombada». Ora, ao dorso das aves associo eu uma armação óssea revestida de pele com escassa substância alimentar. Mas no supermercado havia, bem etiquetado. Ou as galinhas estão muito modificadas ou são peitos (de frango) “transmutados” em pedaços de “lombo”.

Faz-se isso com coisas, ideias, intenções, procedimentos e… palavras. Muito para além do “marketing”. E como as palavras condicionam o pensamento (é com elas que pensamos), ou respeitamos as palavras ou deixamos de (saber) pensar.

Às vezes é só desleixo. Outras vezes é importante perturbar a organização do pensamento. Conta-se que, em incerto país, um ministro diligente perguntava a um seu assessor se determinado normativo já estaria redigido de modo suficientemente confuso para poder ser publicado! 

Para além das leis e da política, também na pseudociência, nos contratos comerciais ou no argumentário do pontapé na bola se caldeia o discurso com contorcionismos de qualquer espécie para se poder afirmar tudo e o seu contrário. E assim, “o que hoje é verdade, amanhã pode ser mentira” e vice-versa.

Sobra ainda a ignorância, mesmo que revestida daquele verniz que o dinheiro compra. Donde poder-se propor que se façam “prognósticos” no fim de qualquer acto, desde o resultado de um jogo ao desfecho de alguma tragédia. Também se ouve falar em mergulho “sobre” um assunto, tal seja o estudo, como que a contribuir para a impossibilidade do facto.

No campo da economia, há entendidos que quanto mais contraditados pela realidade, mais se afirmam prenhes de razão e coerência nas suas análises em todo o tempo.

E certos especialistas da política dizem-se retirados dela para, nos blocos “informativos”, perorarem sobre motivos do seu interesse, ante jornalistas auto-apoucados, nunca se enganando, mesmo quando as suas antevisões não têm adesão ou se opõem à verdade dos acontecimentos.

A adulteração dos termos também é muito comum em tudo o que seja moda. Assim, a agricultura boa passou a ser “biológica” como se qualquer tipo de agricultura pudesse fugir a essa condição intrínseca. Podiam ter-lhe chamado “agricultura ecológica”, mas isso era ceder à lógica de uma expressão feliz.

A mim faz-me alguma pena por variadas razões, de que posso dar mais um exemplo: como sempre tive problemas de audição e, mais tarde sofri de vertigens, o “ótico” foi um domínio de que sempre fui cliente (área de “otologia”), e não têm conta as consultas que tive de “otorrino”, não só por causa de “otites”, como para averiguar o funcionamento dos “otólitos”. Depois vieram uns senhores muito sabedores e fundiram o “óptico”, em que também passei à condição de paciente, com o “ótico” e ficou tudo no mesmo saco. Como ninguém dá por nada, isto não deve ter importância nenhuma.

Pior está quem passa fome, dir-me-ão, e concordo. Esperando que nunca ninguém sugira alimentação farta à base de uivos de canídeo ou se condescenda em bifes de testa de boi.

José Batista d’Ascenção

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