sábado, 13 de maio de 2017

Registo heterodoxo de impressões marcantes em resultado da leitura do livro «Fora de Portas» de A. M. Galopim de Carvalho (Âncora editora, 1ª ed., 2008)

Só há pouco acabei de ler este livro do Professor Galopim de Carvalho – o livro que conta (quase toda) a sua vida -, embora já conhecesse vários excertos publicados «online» pelo autor em vários «blogues», incluindo o seu: www.sopasdepedra.blogspot.pt.
São cerca de 490 páginas que muito impressionam e agradam e com que me comovi, aprendi e diverti. Tendo por subtítulo «Memória e Reflexões», o livro é muito mais do que isso, designadamente pelo que permite conhecer e aprender e pelo que se poderia resolver e vir a projectar no desenvolvimento do país: no ensino e na pedagogia, na divulgação da ciência, na cultura, na qualidade de vida, na economia, etc. Este livro, que envolve, toca e emociona o leitor é também, mais do que o testemunho de uma vida e de um labor notáveis, uma peça de literatura, de história regional (no que tem de particular e de universal), de sensibilidade e de humanismo e de justiça e de amor ao conhecimento e às pessoas. É, em muitas páginas, um humaníssimo poema, que encanta e estremece.

Aspectos profundos da personalidade humana apreciáveis na obra, a partir da própria personalidade do autor
Senhor de uma sensibilidade aguda, atenta, dedicada e delicada, Galopim de Carvalho revela-se sempre uma personalidade luminosa, com grande alegria e vontade de viver. É um Homem de princípios, de bondade, de generosidade, de escrupulosa seriedade e de proceder recto e digno, com uma genuína «humildade que só os grandes sabem ter» (como ele diz de Joaquim Agostinho, pg. 464). É impressionante a amizade sincera que cultiva no trato com as pessoas e personalidades mais diversas, desde os mais humildes e discretos (ou obscuros) aos mais populares ou célebres, do mundo da ciência, da política, das artes, da cultura ou do desporto. Galopim de Carvalho é um talento, de cérebro, de mãos (vários desenhos seus ilustram a obra), de procedimento pessoal e de comportamento social; alguém tão curioso, quanto polifacetado, persistente, paciente e activo.
No prefácio, José Batata Moura, de modo sábio, refere o “despojamento sage da sua simplicidade desarmante” (pg. 11), que o livro confirma de uma ponta a outra, considerando-o, não obstante, “nada propenso à resignação bem comportada” (pg. 14), o que só aparentemente poderia ser contraditório. Um exemplo da sua forte e bem formada personalidade ressalta da atitude de revolta com que se apresentou ao reitor da universidade (Marcelo Caetano) para a sua tomada de posse como assistente da Faculdade de Ciências de Lisboa: «com um fato coçado, camisa escura não abotoada no colarinho, sem gravata, botas de ir ao campo e barba por fazer» (pg. 162), por desagrado, dele e do grupo de assistentes em que se incluía, devido a terem ficado sem receber pelo trabalho realizado durante um ano lectivo, antes de tomarem posse. O desassombro das suas opiniões transparece também no apreço que manifesta pelo deputado europeu Rosado Fernandes quando ele «estrafegou o porcino gasganete» de um colega dinamarquês, «na sequência da grave ofensa à sua honradez feita por aquele eurodeputado» (pg. 274).
Crítica frontal dirige-a ele ao Instituto de Conservação da Natureza que, ignorante e redundantemente, alterou a designação para Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade, acentuando que não é uma atitude preconceituosa, e ressalvando até o respeito pelo que aquele organismo tem feito pela conservação do mundo das plantas, esquecendo-se, porém, da geodiversidade. Sobre a matéria, Galopim de Carvalho convida quem duvidar «a reflectir sobre os muitos casos» que relatou ao longo de cem páginas (pgs 389 – 481). 

Coisas que comovem
Desde logo as referências que vai fazendo a Isabel, a companheira de uma vida, sua mulher dedicada, que o ajuda, apoia e acompanha, para o campo, quando, ainda jovem, como assistente [«A Isabel ia connosco e, para tal, mandara fazer umas botas de atanado com solas de pneu e dois pares de calças de caqui, talhadas à medida num alfaiate, pois que, nesse tempo, (…) calças compridas para senhoras era coisa que não se usava» (pg. 185)], para o estrangeiro, durante a sua formação académica, na juventude, ou em trabalho científico, enquanto investigador, professor ou director do Museu Nacional de História Natural. É também ela que, numa fase inicial da vida de casados, ganha a parte maior do sustento de ambos, sem problemas por Galopim de Carvalho ser então tratado depreciativamente, por algumas pessoas, como “o marido da professora” (pg. 160). Dá ideia que Isabel, a mãe dos seus dois filhos, muito amados, tanto quanto se percebe, terá sido, para além dos pais e dos irmãos, a “sorte grande” que ele soube encontrar (perto, por sinal, uma vez que é como ele de “cepa” eborense, alentejana, portanto) estimar e, sobretudo, merecer.
Tocante é o amor que tem pelas pessoas, sempre a observar aguda mas discretamente, com o fito de compreender, o que se esconde atrás do “biombo” que cada um transporta na relação com os demais: É assim com os seus alunos, com a sua família, com os seus amigos e com quem quer que contacte.
Impressiona, tanto quanto comove, o relato da «tarefa paciente (…) que consistiu em moldar em cimento, simulando pedra, as centenas e centenas de cantarias, à escala e em diversos tons (…). Depois foram horas, de joelhos e de cócoras, durante muitos meses de férias, a assentar pedrinha sobre pedrinha»… (pg. 265), para, «de alma e coração» (na mesma página) construir um castelo, com base nas plantas dos de Almourol, Silves e Sintra, no quintal da casa que alugavam para férias. A obra saiu na escala 1/25, a mesma escala dos dois conjuntos de bonequinhos de chumbo, um de cruzados e o outro de sarracenos, que Isabel oferecera aos filhos. Faltava o castelo para as correspondentes lutas, e o castelo foi construído, embora não tão depressa quanto a vontade das crianças, que iam colaborando como podiam. Tal foi o amor à casa e ao que para eles representa que acabaram por comprá-la.
Quando, em 1993, a Câmara de Évora lhe pergunta que destino se devia dar ao dinheiro dos direitos de autor que doara à autarquia, que lhe patrocinara a edição do livro «O Cheiro da Madeira», indicou de imediato a Escola de S. Mamede, daquela cidade, onde fizera a instrução primária, comentando a seguir: … «hoje todas as crianças andam calçadas (…), no meu tempo, a maioria vinha de pé descalço. Algumas dessas crianças, nunca o esqueci, traziam um pedaço de cortiça para colocar entre os pezinhos e o ladrilho a ressumar humidade fria como gelo.» (pg. 274)
A sinceridade e franqueza, a bonomia, a serenidade e a doçura do autor, a que se soma cuidado natural, sensibilidade e inteligência, irradiam e afagam a alma dos seus interlocutores, que passam a gostar muito dele.
Neste livro também é assim.

O labor científico e a divulgação do saber
Neste livro, Galopim de Carvalho faz-nos perceber de modo abundantíssimo quanto o conhecimento científico é importante na formação e na realização humana e no desenvolvimento dos países, particularmente daqueles que, como Portugal, fruto da ignorância e da incultura, aproveitadas por políticos ditatoriais (como Salazar) ou incompetentes e oportunistas (como tem acontecido no regime democrático), desperdiçam ou destroem os seus recursos. Daí o seu grande empenhamento na produção do saber e na sua divulgação, por todas as formas legítimas ao seu alcance. Como neste livro.

Um finíssimo sentido de humor 
Há neste livro várias situações que, do modo como estão descritas, fazem rir com gosto. Algumas delas são geniais. Para não aumentar excessivamente a extensão deste texto publico-as de seguida, quando tiver oportunidade.

Algo que toca o coração dos professores
Porque também sou professor, e não querendo agora entrar em matérias do âmbito disciplinar e programático, focadas na obra, não posso deixar de assinalar certos aspectos gerais do ensino a que o autor dispensa cuidada atenção.
Por exemplo quando escreve: «no Portugal de hoje, (…) os professores, desautorizados pelas tutelas, perderam a capacidade de educar» (pg.333).
Tendo já antes (pg. 286) registado: «Mostrámos que a ciência pode ser abordada com simplicidade, sem perda de rigor, em actos de prazer».
E mais adiante (pg. 365), sem tergiversar: «o saber científico, quando convenientemente apresentado, interessa a toda a gente».
Assim é, Bom Mestre.

Nota adicional
É tão rico o livro «Fora de Portas» que ninguém que leia este texto pode pensar que está nele uma súmula aproximada do seu conteúdo. Há só um remédio: ler o livro, o que pode (e talvez deva) ser feito sem qualquer espécie de pressa.
José Batista d’Ascenção

Sem comentários :

Enviar um comentário