quinta-feira, 5 de setembro de 2019

«Zahra» – o primeiro livro de ficção de Tomás Bandeira

Jovens escritores que merecem estímulo

O jovem escritor Tomás Bandeira é médico de formação, viajante por impulso e por opção e é daquelas pessoas desejosas de servir comunidades e populações desprotegidas e/ou esquecidas, sentimento que nutre desde tenra idade. Mesmo que se descontem o idealismo e a utopia dos verdes anos, cabe-nos incentivar e aproveitar a força e a disponibilidade dos jovens que (mais) fogem à conformação acrítica e inactiva aos ditames da sociedade predadora em que «imergimos» as crianças pela educação, pelas práticas e pelo exemplo. Além disso, em Tomás Bandeira notou-se, ainda menino, o gosto de elaborar e submeter textos aos concursos da biblioteca da escola secundária que frequentou – a Escola Secundária Carlos Amarante. Já vem desse tempo a sua inclinação para o registo escrito.
Zahra é a personagem principal do livro. Trata-se de uma bela jovem saharaui de um campo de refugiados em Tindouf, no sudoeste da Argélia.
Em termos históricos, a ocupação do Sahara Ocidental, a partir de 1975, desencadeada por Marrocos e protagonizada também pela Mauritânia, empurrou, entalou e confinou, na geografia e na indiferença do mundo, a população nómada saharaui. A localização e o contexto geográfico estão esquematizados de modo preciso e elucidativo num mapa das páginas 175-176.
Zahra tem uma personalidade forte e firme, é determinada e não se conforma com as limitações do «encarceramento» a que a sua família e o seu povo estão sujeitos. Mulher casada, por amor, grávida no fim do tempo, vê chegada a hora do parto, numa altura em que o jovem marido havia partido para (ou a pretexto político de?) uma curta visita aos familiares nos territórios libertados. Porém, o nascimento ocorre, o marido tarda e o coração de Zahra atormenta-se com a possibilidade de que tenha sido morto nas zonas militarizadas.
Zahra pensa introspectiva e refractariamente no seio da sua família, e sofre duramente com isso e por isso. Ensimesmada e triste, cortante e decidida, não se «distrai», nem se adapta, nem se resigna, nem aceita as condições do campo de refugiados, nem o infortúnio de perder o marido, nem que o seu (estremecido) filho, em quem deposita esperanças para o futuro do seu povo, não conheça o pai.
Um dia parte com o menino, depois de organizada a fuga, em segredo, um modo de dar curso à revolta e disposta a fazer tudo para encontrar o seu homem. Viaja para os territórios libertados, onde vive a família dos sogros, que a ajuda a procurá-lo por todos os meios. Debalde. Decide então atravessar a faixa minada e cruzar o muro para o território ocupado. Resoluta, pede ajuda a uma antropóloga estrangeira (de Olivença!) a trabalhar com o povo saharaui, que não consegue recusar-lha. Dissimulada, deixa o filho entregue à família do pai. É levada de carro até à proximidade do muro, em direcção ao qual caminha, intrépida e vertical, imensa na sua coragem e loucura e fragilidade, deixando atónitos os soldados marroquinos que berram para que páre. Mas o destino de Zahra traçara-o ela. Não vacilou. Fê-lo pela sua causa. Pelo seu povo. Pelo seu filho, semente sua e desse povo, de que ambos são símbolo e pertença.
A história está bem arquitectada. T. Bandeira teve o arrojo de meter-se dentro do corpo e da alma de uma jovem rapariga, esposa e mãe de uma cultura particular, cuja personagem construiu com êxito e soube fazer com que não lhe «morresse» ao longo da narrativa. Prometedora vitória.
Em matéria de escrita, alguns pormenores de linguagem, como «enxaguados em lágrimas» (p. 29) ou «dar a face fraca» (p. 51) e a redundância de algumas frases [«cheirar com o próprio nariz» (p. 19), «lágrimas pelo rosto abaixo» (p. 39), «os primeiros passos do caminhar» (p. 97); etc.] talvez não sejam (ainda) as expressões mais conseguidas para criar um estilo literário original, ao alcance do autor. Mas a nobreza de sentimentos e a força poética moram na narrativa.
Justifica-se que se aguardem novos livros, sem «exigência» nem «pressão», que isto de conceber livros deve ser talvez como gerar filhos que se desejam muito mais do que se planeiam.
Felicidades, merecidas.

José Batista d’Ascenção

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