terça-feira, 6 de outubro de 2020

Cinzas e a humilde grandeza da alma humana

Vista parcial da aldeia do Roqueiro,
que o fogo circundou em todo o perímetro

Negro, castanho e algumas manchas de verde. O solo nu. Ainda o cheiro intenso a queimado onde há troncos e raízes que continuam a arder debaixo da terra, mais de vinte dias após o inferno das chamas. Nas extensões ardidas não se vêem nem se ouvem pássaros. A sua música deu lugar ao silêncio fundo da natureza, realçando o efeito desolador da paisagem enegrecida e do odor que se mantém. Já nas “ilhas” de verde juntam-se muitos passaritos, provavelmente em luta desesperada por alimento.

Na expressão das pessoas nota-se um desalento profundo, uma mágoa cansada, calada numas e liberta em voz forte noutras. As primeiras porque se sabem sós e julgam inútil dizer aquilo para que não há palavras. E as segundas porque não entendem nem aceitam a atitude e a acção daqueles a quem cabe (ou devia caber) governar (bem) e de muitos dos que são designados por “protecção civil”. Reclamam bombeiros de proximidade bem preparados e equipados, com autonomia e poder de decisão na protecção atempada de pessoas e bens. Nas horas de aflição, só puderam contar consigo próprios e com os populares que, de povoações vizinhas, acorreram a prestar o auxílio possível. Em todos o susto, a perplexidade, a solidão e um triste sentimento de isolamento e abandono. Sabem bem que os jovens cujos pais partiram em busca de uma vida melhor cada vez têm mais dificuldade em retornar às origens, suas e dos seus.

No fim-de-semana passado pude finalmente ir ver a casinha que os meus pais contruíram e onde nasci. E revivi sensações que dispensava. Desconhecia que o fogo pudesse passar no sótão de uma casa sem queimar os pisos inferiores e sem o telhado, com caibramento de madeira, colapsar. Fiquei assombrado: tubos e cabos eléctricos e de antenas arderam até ficar o cobre exposto. Os equipamentos de comunicação ficaram impossibilitados de funcionar. Estive, por isso, afastado das imagens e do som do mundo durante dois dias, mas não lhes senti a falta. Pelo contrário, foi grande o conforto que me encheu o peito em todos os contactos com os que me conhecem desde sempre.

Soube que a casa que pertence à minha família não ardeu completamente porque aquelas pessoas e outras que não conheço não desistiram de a salvar, com a água que conseguiram trazer e espadanando sem descanso as chamas que a envolviam. “Perdidos” no mar de fogo, os bombeiros não acudiram ali, como o não fizeram noutros lugares da povoação. Mas os meus conterrâneos não desistiram, lutaram até à exaustão e venceram aquela tormenta.

Eu e os meus familiares ficamo-Vos infinitamente gratos, gente boa!

José Batista d’Ascenção 

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