sábado, 14 de janeiro de 2017

“A Ira de Deus sobre a Europa”, livro de J. Rentes de Carvalho, publicado pela Quetzal

Um livro frontal, duro, numa escrita precisa, rigorosa, incisiva, clara, de um autor com personalidade forte, que poderíamos associar à imagem de um transmontano típico. Rentes de Carvalho é um homem de têmpera que, emigrado desde os vinte e seis anos, vive há mais de cinquenta na Holanda. O sofrimento inerente à pobreza acrescido pelas vivências não menos sofridas da condição de imigrante permitem ao autor um olhar profundo e sem contemplações sobre o país miserável que deixou, mas que traz no coração [«nenhuma influência (…) parece capaz (…) nem sequer de arranhar as colossais raízes que me agrilhoam à terra onde nasci» (página 167)] e com que se preocupa [«para a terra onde nasci desejaria eu governantes menos corruptos e instituições mais justas» (nota de rodapé da página 13)], e permitem-lhe também analisar e comparar objectivamente a eficácia económica e social do país em que passou a viver, desmascarando inapelavelmente os defeitos das suas gentes, sem deixar de se questionar sobre a justeza das suas próprias avaliações. E, do alto dos seus quase oitenta e sete anos, Rentes de Carvalho olha o mundo na sua globalidade [«O passado dos países, malgrado os testemunhos bem intencionados da História, nunca é bom nem bonito» (páginas 135-136)], temendo o que a si próprio já não deve incomodar especialmente, mas pode condicionar o mundo e em especial a Europa, que se tornou um polo atractivo irresistível para os imigrantes, que ela não tem meio de conter e de que, de resto, precisa [«a União Europeia, para economicamente sobreviver, necessita deles. Pelo menos de 100 milhões no próximo quarto de século» (página 217)]. Homem que muito viu, viveu e aprendeu, conhece bem as fragilidades do ser humano, e por isso defende a solidez de princípios, regras sociais e leis a condizer, para que a humanidade não descambe proximamente no caos, na selvajaria e na guerra, mesmo ou principalmente onde se julgava que a civilidade e a paz eram conquistas definitivas, como é o caso do espaço europeu, que tende explosivamente para uma miscelânea de culturas com modos de viver difíceis de compatibilizar, sobretudo tendo em conta o elevado número de islamitas.
Sobre a Holanda, que há dez anos sente como pátria sua, sem abdicar da pátria portuguesa, Rentes de Carvalho não hesita em escrever «arrisco-me a afirmar que o agregado familiar se tornou um desagregado» (página 219) e «quando um país é grande na pornografia, na pedofilia, no comércio de droga, soa contraditório o querer ser também campeão da moral» (página 220). O retrato que nos deixa sobre o país em que se acolhe e que passou a sentir (usa recorrentemente o verbo «ressentir», em vez de sentir) como seu é muito completo e impressivo, abarcando a personalidade, os costumes, as casas, a alimentação, o espaço público, a cultura, a economia e a política dos holandeses. E contrasta-o muito bem por oposição a outras culturas, expondo a sobranceria e preconceito dos autóctones e a ficção da sociedade holandesa como muito aberta e integradora.
Ao ler o livro lembrei-me de uma historieta curiosa: Um meu familiar directo, jovem, esteve com um colega, entre Janeiro e Julho de 2016, a fazer um “Erasmus”, na universidade de Leiden. Uma das iniciativas integradoras levadas a cabo pela universidade consistiu em os alunos de cada nacionalidade prepararem um prato típico do seu país. Os dois amigos portugueses, depois da troca de uns “mails” e telefonemas com as mães, decidiram fazer um prato de arroz doce. Feita a cozedura, repararam eles que o arroz doce estava muito branco. Novo telefonema, em cima da hora, e ficaram a saber que se tinham esquecido dos ovos!, uma chatice que não podiam remediar. A custo foram para o encontro e lá colocaram o seu prato na grande mesa, rodeando-a para saborearem os acepipes dos outros. Porém, quando momentos depois voltaram ao local em que ainda devia estar o arroz doce desmaleitado, verificaram com espanto que não restava nem um grão… A explicação talvez esteja na página 74 deste livro de Rentes de Carvalho: «o capítulo das sobremesas [na Holanda] é de uma pobreza franciscana: rijstebrij, vla, griesmeelpudding… Cada uma mais insulsa que a seguinte». E, em nota de rodapé: «Rijstebrij: arroz doce sem ovos;», etc. Ou seja, os rapazes, sem querer, fizeram uma boa sobremesa… à holandesa, a que houve quem chamasse um figo.
Voltando às preocupações de Rentes de Carvalho, o (meu) receio é que se confirmem. Para o evitar, grande teria que ser o trabalho das famílias, das escolas e… dos políticos, se estes e aquelas partilhassem tais preocupações.

José Batista d’Ascenção

Sem comentários :

Enviar um comentário