sábado, 4 de novembro de 2017

A maldade que há em nós

A fisiologia humana depende directamente dos genes e das hormonas. Mas cada um de nós é, desde a concepção, o produto não só daqueles agentes como também da influência do ambiente que o rodeia, sejam as condições físico-químicas (o conforto, a alimentação, os factores naturais…) sejam as condicionantes educacionais, afectivas e sociais. Nenhum ser humano pode prescindir do amparo da família, sobretudo nos primeiros tempos de vida, nem da integração na sociedade, nem de desempenhar alguma função, motivo por que carece de um tempo de aprendizagem básica que tem lugar ao longo do primeiro quarto da sua vida (e às vezes durante mais tempo ainda). Daí a importância da educação, com destaque para os papéis da família, primeiro, e da escola, depois.
Não foram poucos os que, sobretudo depois de Jean-Jacques Rosseau (1712-1778), se agarraram à ideia, de que o ser humano nasce bom e que a sociedade é que o corrompe - a teoria do «bom selvagem». Nada comprova tal conjectura e quem lida com crianças e jovens sabe quanta agressividade e instintos egoístas e de posse é preciso ir burilando, pela persuasão, pelo acompanhamento e pela correcção, sempre que necessário, mas, principalmente, pelo exemplo. Isto não obsta a que o contexto seja um factor de peso nos comportamentos, que a minha avó traduzia numa recomendação simples: «junta-te aos bons serás um deles, associa-te aos maus serás pior do que eles».
Quem ler livros como «O Deus das Moscas» de Wiliam Golden (1911-1993) ou «O Jovem Törless» de Robert Musil (1880-1942) fica arrepiado com a crueldade de que as crianças são capazes. E quem tiver dedicado alguns anos da sua vida à profissão de educador infantil ou de professor dos mais novos sabe que aquelas obras não são apenas peças literárias fruto da imaginação dos seus autores. A realidade é mesmo assim e é melhor não a iludir.
Não é fácil educar. E é muito difícil (saber) educar bem (quem disser o contrário é porque conhece a «fórmula» ou se convenceu disso…). Uma regra de ouro, suponho, é não tolerar que as más práticas de outros e os maus exemplos justifiquem procedimentos condenáveis. Também do lado de quem aprende, a tarefa não é sempre fácil, nem simples, nem gostosa e, frequentemente, é trabalhosa (as excepções, que as haverá, confirmam a validade da regra).
Em consequência, é nossa obrigação, no respeito pela individualidade única e irrepetível de cada criança (exceptuando o caso dos gémeos chamados verdadeiros, em todo o espaço e por todo o tempo, ou a possibilidade monstruosa da clonagem humana) e pela sua personalidade, definir os valores por que nos pautamos e que devemos incutir nos mais pequeninos, assim como as regras básicas de comportamento individual e de relacionamento social, bem como o conjunto de saberes que permitam a cada um conhecer-se e conhecer o mundo em que se integra, interagir dentro de parâmetros conviviais aceitáveis, respeitar a natureza e os bens próprios e alheios e desempenhar alguma função útil para o próprio, para quem tiver (ou vier a ter) à sua responsabilidade e para a comunidade.
Não é coisa pouca. Mas não podemos fugir a essa responsabilidade. Tal como não podemos evitar todos os erros e falhas no cumprimento dela. É inaceitável a demissão. A ausência. A indiferença. E a cobardia. E de tudo isso vamos tendo que sobre.
Não que resulte daqui a pretensão, objecto de certas teorias políticas, de se poder criar o «homem novo», peça de uma engrenagem totalitária onde a liberdade e autonomia pessoal desaparecem, dando lugar a sociedades de horror, que a História bastamente demonstra. Cada ser humano deve ser tão intrinsecamente livre, quanto responsável e responsailizável pelas suas atitudes e acções. E isto implica, em cada pessoa, a humildade de aprender e a capacidade de se corrigir durante toda a vida. A educação de cada um nunca está completa, circunstância que está longe de ser um mal, pelas possibilidades de evolução e de enriquecimento pessoal que proporciona.
Mas é de pequenino que se começa a caminhada, necessariamente pelas mãos de quem já viveu mais e tem o mais genuíno amor pela progénie, como os pais, ou a devoção ao ensino e formação, como os professores.
Por consequência, é difícil o caminho, mas não nos resta senão caminhá-lo, e saborear os momentos bons e felizes que também tem. Sempre com a esperança de que à mágoa de cada queda sucedam o ânimo e a energia renovada para retomar o percurso.
Os vindouros saberão se o fizemos bem ou mal, quando forem eles a sentir o peso das dificuldades que hoje nos sobrecarregam.
Até lá, procedamos como nos compete. Que a mais não estamos obrigados, creio.

José Batista d’Ascenção

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