sábado, 1 de setembro de 2018

A luz de Lisboa (II)

Em manhã propícia ao sono dos (mais) jovens (e o pequenino, que nisso é extraordinário, parece que adivinhava as alturas em que os avós queriam – e quase ficavam à espera – que ele acordasse, deu-nos toda a liberdade…), escapámo-nos para a Baixa. Do Rossio, pela rua do Carmo, ainda com (relativamente) pouca gente, fomos deleitar-nos com as ruínas do Convento do Carmo. Com calma, podendo ver e ler com tempo. Até havia um jovem guia, simpático e humilde, que se esforçou em explicações, com algumas lacunas, que preferimos não comentar. O edifício não resistiu ao terramoto de 1755, mas as suas ruínas permanecem, estão bem tratadas, são muito pedagógicas (em termos de história, de arqueologia e, outra vez, de geologia: os arcobotantes necessários para a sustentação do edifício erigido na colina arenosa algo instável, os efeitos do sismo de 1755, etc…) e recomendam-se. À saída, o render da Guarda Nacional Republicana captou a nossa atenção, como a de dezenas de outras pessoas, no largo frondoso, e foi uma nota agradável.
Mudando o rumo, «escalámos» a Mouraria e subimos ao Castelo de S. Jorge, que há muito não víamos. Quase não havia fila para a bilheteira (oito euros e meio a entrada por pessoa). Por lá andámos, eu a fazer-me forte, impondo o ritmo, porque queria muito ver Lisboa lá do alto, e o tempo começava a faltar para tanto «ver»: o castelo em si, as escavações arqueológicas, a exposição permanente, a cidade, em diferentes perspectivas, e o grande e belo rio, como não temos outro. Percorremos todas as escadas e adarves, sem perder ameia, mas a minha parceira, uma caminheira apreciável, começou a queixar-se do… calçado.
Tínhamos que descer. O que foi rápido, ajudados por um salvífico elevador. De novo no Rossio, descansando, sentados, à sombra de um jacarandá, esperámos pelos nossos «alfacinhas» enquanto, ignorando a fome, apreciávamos aquela belíssima praça: o edificado, a imponência do D. Maria II, as árvores, as fontes e a estátua de D. Pedro IV, bem no alto do pedestal, disfarçando eficazmente que o modelo não corresponde à fisionomia do monarca… O almoço foi bem merecido, ocorreu ali próximo, num recôndito e silencioso restaurante do Inatel, por preço módico e qualidade bastante razoável. Não foi farta-brutos, longe disso, mas foi suficiente.
Agora dispúnhamos de guias credenciadas, e por isso não perdemos a igreja de S. Domingos, ali ao lado, pelo monumento, pesado, e profundamente cicatrizado, ainda enegrecido pela ígnea calamidade que nele deflagrou em 1959 e destruiu o seu interior, sorumbático, escuro, mas imponente e digno. No largo da entrada, no chão, meia esfera de rocha, à altura de um homem sentado, com estrela em depressão na superfície cortada em declive, para quem queira ler a sua inscrição, chama a atenção para o massacre de judeus, ali ocorrido, no fim da Idade Média (1506). Muita história (mais ou menos apagada) e muitas feridas, saradas ou por sarar, do tempo, da natureza, dos acidentes e das acções dos homens, tão simultaneamente capazes do bem e do mal, do belo e do horrível.
Outra vez a rua do Carmo, agora com muitas dezenas de pessoas, com música de qualidade amplificada de um violoncelo em mãos exímias. Sempre a andar, entrei e fugi da livraria Bertrand, por não poder ceder ao apelo de tantos bons livros, pelo peso e pelo tempo de que não dispunha, razão por que também não nos sentámos na cadeira ao lado (da estátua) de Fernando Pessoa (até porque havia vários pretendentes que ali se queriam fotografar) nem nos demorámos na praça e na observação da estátua do nosso (outro) poeta maior, em porte altivo, tanto que me deu a impressão de que o escultor não considerou esteticamente a cegueira do vate. Seguiu-se o «Bairro Alto», as suas ruas e travessas com as decorações típicas, com muitas pessoas petiscando e bebendo, mas sem o movimento repleto da noite. Estes bairros típicos de Lisboa são o que são e devem ser preservados. Gostam os lisboetas (não sei se todos), gostam os turistas (é o que dizem) e nós, pass(e)antes do resto do país, conhecíamo-los da televisão e de ouvir falar. Tudo é bom e tudo é bem se, por típico, não se fizerem passar dificuldades ou perturbações e/ou necessidades a quem lá vive.
Seguindo, passámos pelo miradouro de S. Pedro de Alcântara, tentando apreciar as vistas, magníficas, mirando de longe o Castelo de S. Jorge, onde havíamos estado, e toda a parte da cidade subindo até ele ou dele descendo, para referir apenas uma das perspectivas que a colocação de vedação protectora, por precaução, devida a instabilidade do terreno, limita mas não impede.
Mais além, o Jardim do Príncipe Real. Um caramanchão monumental de um velho cedro disposto e conduzido em estrutura de suporte, a convidar ao repouso, mais relaxante se houver música de algum(a) executante disponível, como era o caso. Depois as grandes árvores, com destaque para as imponentes Ficus macrophyla de troncos e raízes descomunais, quais estranguladoras das árvores concorrentes, mas todas criando um ambiente muito sereno, frondoso e acolhedor.
Para ver mais plantas fomos em direcção ao Jardim Botânico. E aí, não tendo por perto o Professor Fernando Catarino ou o Professor Jorge Paiva ou alguém do mesmo «quilate», eu dispensava guia. É um espaço relativamente pequeno (cerca de 4 ha) e cabia-me aproveitar todos os momentos para ver cada exemplar com a calma necessária (aqui, não podia permitir-me ter pressa: a mãe do bebé podia alimentá-lo calmamente – de resto foi a única «reclamação», e suave, que ouvimos ao rapaz em todo o percurso – os meus acompanhantes podiam descansar e hidratar-se e esclarecer alguma curiosidade, mas nem foi preciso invocar tais argumentos: aquele local fora incluído no roteiro, por minha causa, afinal). Grato, aproveitei a oportunidade, com gosto e proveito.
O jantar, caseiro, e o pequeno serão (a salvo da televisão) que se seguiu, como nos dias anteriores, serviram para usufruir e saborear a companhia (sobretudo) do neto e dos pais dele. E o menino correspondeu sem falhas, mas não adianto mais por (me) ter (com)prometido (a) não derivar para os afectos familiares…
(continua)

José Batista d’Ascenção

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