quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

T’arrenego, pai natal

Fonte da imagem
Bem sei que para muitas crianças és um velhinho de barbas brancas, vistoso, simpático e meigo e, principalmente, um dador de presentes.
Mas para mim és, desde a infância, um usurpador de funções e um mau substituto do Menino Jesus, que era pobre como eu e as pessoas da minha família, mas riquíssimo em generosidade e doçura e suavidade e discrição. Com a força das multinacionais do comércio arrumaste violentamente o Deus-Menino da minha afeição. Nunca soube onde nem como um Jesus pobre tinha tanto para dar. Como os familiares me diziam que era Deus, não me cabia compreender os seus prodígios, que aceitava sem sombra de dúvida. Não que ele fosse pródigo comigo ou com as minhas irmãs, longe disso. Mas, não sei porquê, era tal a maravilha de receber coisas pequeninas e simples, que o venerava mais que aos mais queridos da família, porque assim me disseram que devia ser, especialmente a mãe, as tias e a avó, dentro de portas, e as catequistas, nas sessões de doutrina.
Imagem obtida aqui.
Não podes imaginar o cuidado com que deixávamos o sapato à beira da lareira, próximo da chaminé, e nos íamos deitar, silenciosos, para não perturbar a vinda do Menino, nas noites longas e frias de 24 de Dezembro. E de manhã, depois de acordar, íamos ver se ele realmente tinha vindo. E tinha. Vinha sempre. Pobre como nós, mas vinha. Era uma elevação do espírito, tínhamos merecido que viesse. Não o havíamos incomodado na sua acção. Respeitávamo-lo com convicção profunda, àquele Menino despojado como nós devíamos ser.
Quando tu, meu vermelhão berrante, apareceste e te tornaste ubíquo e barulhento em todos os Dezembros, nas ruas, nas montras, nos cartões e nas tevês e até trepando paredes, qual bombeiro escalador, assim como nos jardins-de-infância e nas escolinhas dos mais pequeninos, triunfavas contra o meu sentir e também contra o meu gosto. Certo que muito antes disso, ainda meninos, já a mana mais velha tinha reunido connosco para nos dizer que eram os pais que previamente compravam os presentinhos e que os colocavam no sapatinho depois de adormecermos - ela até sabia onde eram guardados antes de os recebermos. Foi um desapontamento sofrido, depois de uma quase recusa inicial em aceitar que pudesse ser assim.
Mas nem isso abalou a ternura que continuei a nutrir pela imagem de Jesus, que fui guardando comigo. E tudo o que sobre ele li me impressionou favoravelmente, mesmo quando não compreendia, então como agora. E fui crescendo e envelhecendo e tal imagem não morreu em mim. E quando, um dia, muito jovem, li um conto chamado «O Suave Milagre», de Eça de Queirós, revivi intensamente o significado dessa imagem que ainda mora no meu peito. Nenhuma outra leitura alusiva ao Natal, de que sobressaem os contos de Dickens e os de vários autores portugueses seleccionados por Vasco Graça Moura (em que se inclui «O Suave Milagre», claro está), me tocaria assim.
Não sei, pai natal, quantos anos mais vais sobreviver ao consumismo e ao materialismo que, através de ti, se disseminou e contaminou a época mágica do Natal de adultos e crianças. Mas admito que venhas a ser ignorado e «deitado fora», quando, por quaisquer motivos, passares de moda e já não renderes. O que te substituirá, não o sei.
Por mim, conto morrer com reminiscências gratas do esquecido Menino Jesus. 

José Batista d’Ascenção

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