domingo, 11 de agosto de 2019

Migrações e emigração – um fado dos portugueses

Notas breves, tendo como referência o interior da Beira Baixa na segunda metade do século XX.
«A emigração é decerto um mal.
Porque aqueles que [emigram] mostram ser, por essa resolução, os mais enérgicos e os mais rigidamente decididos; e […] é um prejuízo perder […] vontades firmes e […] braços viris.
Porque a emigração entre nós […] não é […] a transbordação de uma população que sobra, é a fuga de uma população que sofre;
Porque […] é a miséria de um país esterilizado que expulsa, sacode e instiga a emigrar, a procurar longe o pão.» (1)

Muitas páginas de excelentes obras de escritores notáveis aborda(ra)m o tema das migrações sobre todas as perspectivas com interesse. Mas o assunto continua dramaticamente actual e nem são portugueses, no tempo presente, as vítimas mais chocantes - com o devido respeito pelos que recentemente fugiram da Venezuela… Para tantos, em tantas zonas do mundo, a fuga desesperada à miséria, à fome e aos horrores da guerra, a morte colhe-os implacavelmente antes de «chocarem» com muros que não podem atravessar ou de alcançarem os portos de onde são repelidos. Tal é o horror do que se passa, que o Mediterrâneo se tornou hoje um cemitério de pessoas em fuga, a quem é apagada a existência pela acção ou pela negligência dos poderes do mundo, explorando o medo, que instigam, das populações dos países de destino. Não é sobre eles este texto, que se limita a um breve apontamento sobre migrações e emigração de portugueses, sobretudo da que se chamou zona do pinhal da Beira Baixa, durante a segunda metade do século XX, tal como a conheci.
No interior do país, embotado e asfixiado pela ditadura salazarista, as condições de vida dos populares eram tão miseráveis e a fome tão presente que os que tinham saúde, força física e ânimo fugiam em busca de pão, quase sempre com o fito de amealhar para voltar à terra onde nasceram. Das Beiras para Lisboa, para além de homens válidos, à procura de «empregos» de baixa condição, compatíveis com a sua falta de habilitações e de experiência fora das tarefas rurais, na agricultura e na floresta, também eram levadas raparigas que iam «servir» em casas de gente de maiores posses. O movimento para a cidade foi-se acentuando e viria a contribuir para a proliferação dos bairros de lata na capital. Outros movimentos com expressão, sobretudo da Beira Baixa para o Alentejo, eram os das ceifas, restringidos a homens que iam cortar o trigo do «celeiro de Portugal», como Salazar imaginou a planura alentejana. Um erro de governante, insuficiente para matar a fome dos portugueses, desde logo dos alentejanos, sem atenuar a miséria destes e dos «ratinhos» beirões (nome depreciativo atribuído pelos alentejanos aos ceifeiros provenientes das Beiras), trazidos em «carreiras» para o trabalho sazonal da ceifa e levados de volta às suas origens finda a época, sob a canícula e aridez do raso a perder de vista. Homens e mulheres, rapazes e raparigas, partiam ainda da pobreza do interior das Beiras para as mondas, para o amanho das vinhas e para as vindimas, no Ribatejo, ou para a apanha da azeitona, mais a nordeste daquela província e nas proximidades de Castelo Branco. Eram sempre trabalhos de curta duração (entre três semanas a mês e meio) e de magro provento, a que os pobres se obrigavam, por necessidade.
Outros houve que se aventuraram para fora do país, em jornadas temerárias, «a salto», sob a mão ávida de «passadores». Às motivações de necessidade, na década de sessenta, juntava-se a perspectiva de os jovens rapazes fugirem à guerra colonial, mesmo ficando depois impedidos de regressar ao país. Nessa década, a França foi destino comum para muitos portugueses, de todas as regiões do país. A Venezuela, na América do Sul, foi outro destino, por exemplo a partir da Beira Litoral, mas não para os naturais da zona do pinhal da Beira Interior. Desta zona os fluxos dirigiam-se para a Europa, com a França à cabeça, mas também para outros países, como o Luxemburgo, a Alemanha, a Suíça ou a Inglaterra. Houve quem tivesse emigrado para as então colónias portuguesas em África, principalmente para Angola e Moçambique. Dos Açores e da Madeira, muitos ilhéus tentavam escapar à miséria emigrando para os Estados Unidos, um destino não preferencial dos beirões. A emigração para o estrangeiro começou pelos homens, muitos dos quais vieram buscar as mulheres e, por vezes, os filhos.
De comum, os emigrantes portugueses partiam fixos no regresso às origens. Muitos porém, viram o destino trocar-lhes as voltas, porque os descendentes se adaptaram aos locais onde passaram a meninice e a juventude ou onde nasceram. E foram permanecendo. Mas gostavam de fazer casas em Portugal, mesmo que só para passarem as férias, e assim renovaram o parque habitacional do país, ainda que sujeitos à crítica não sem alguma inveja de alguma intelligentsia indígena porque eram casas do tipo maison ou à americana, com bandeiras de Portugal e dos EUA expostas alegremente. Outro contributo que deram ao país, durante os alvores da democracia, em que os gastos suplantavam a produção, foi suporte financeiro, a retardar o caminho ameaçador na direcção da bancarrota.
Hoje, em muitas regiões do país, monumentos escultóricos testemunham a determinação heróica dos emigrantes portugueses. O homem a pé, de mala na mão, é um ícone comum a muitos deles.
O país deve-lhes muito. Estas linhas são uma pequenina homenagem.

José Batista d’Ascenção

(1) Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão (1871). «As Farpas». Coordenação de Maria Filomena Mónica. Princípia Editora, Lda. Cascais. 4ª edição – Abril de 2013. Pg. 312.

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