sexta-feira, 16 de agosto de 2019

«Ussu de Bissau» - o segundo livro de Amadú Dafé

Aos jovens escritores de língua portuguesa, o apoio que merecem.


Há dois meses e pouco, numa altura em que estava imerso na «correcção» de exames da primeira fase, uma jovem amiga, docente com passagem por vários países de África, que admiro e conheço desde a infância, mostrou interesse franco em que fosse ao Porto assistir ao lançamento da obra em epígrafe. Acabei por não (poder) ir, mas fiquei curioso. O livrinho (de cem páginas) entrou para a minha lista de leituras. Quando chegou a vez li-o num rápido. Não apenas porque é pequeno, mas porque, iniciado, já não parei até concluir.
O autor é um jovem guineense que veio para Portugal há meia dúzia de anos, onde trabalhou para fazer formação superior, tendo-se licenciado pela Faculdade de Direito de Lisboa e encontrando-se a fazer um mestrado na área da contabilidade pela Universidade de Aveiro. Com parca bibliografia, que tem a vida toda para aumentar, como se deseja (o outro livro chama-se «Magarias», foi publicado em 2017 e não está disponível no mercado), foi primeiro classificado em dois prémios literários pelo Centro Cultural Brasil - Guiné Bissau, na categoria de conto (em 2015 e em 2017) e em 20112 venceu o «Prémio Literário Internacional, Conto Infantil – Matilde Rosa Araújo, organizado pela Câmara Municipal da Trofa».
Amadú Dafé tem uma dedicação notória à língua portuguesa, que trata bem e de que a lusofonia sai enriquecida. Para palavras e expressões crioulas, o livro apresenta um glossário na abertura, antes do prefácio, algumas delas muito curiosas e belas, como por exemplo «fuska-fuska» (que eu transporto para a nossa esquecida forma «lusco-fusco»), mas que não contempla todas as que são usadas no livro (como «sessos», «boré»…), parte das vezes por não ser necessário. Expressões construídas com “português corrente” também muito expressivas são, por exemplo, «passarinha chorina» aplicada aos prantos da mãe de Ussu ou «eu nunca escangalhei nada de ninguém», referindo-se à ausência de maldade do protagonista ou «toda a minha família sustou» ou «raios trovejadores […] com seus faíscos» ou «antes do sol romper a selha», ou ainda: «assumir os timões da minha vida», «palavras mélicas», «roupas bandarilhadas nos corpos magros», «aventura pernã», etc.. A poesia, a candura e a ternura estão presentes em períodos como «corria […] em perseguição à lua e, na minha fantasia, ela vinha atrás de mim no regresso. Parava quando eu parava, caminhava devagar quando eu assim caminhava.» E o sofrimento e o medo expressos em boa literatura:  ...«o silêncio caiu outra vez  encorpando o espaço.» Há também a palavra pensada, reflectida e condensada: «As causas de determinados efeitos são sempre efeitos de outras causas.» E as lições de boa memória: «ao cobarde ninguém pergunta se acordou bem, muito menos se está melhor». Por fim, o conhecimento da sociedade humana: «A pressão social prefere a farsa a sinceridade. […] Desde sempre e provavelmente para sempre». Antes disso, a consciência da vantagem em aproveitar os aspectos positivos da desgraça e a firme determinação de seguir em frente: o «Senegal ensinou-me a ver o futuro, a desejá-lo, a organizar tudo para que seja possível […] e nunca desisti dos meus sonhos.»
O percurso de «Ussu de Bissau» desenrola-se por dezanove capítulos curtos, titulados por uma palavra simples, de significado claro e forte, em que o sofrimento atroz de uma criança, sem direito aos mais elementares direitos, e sujeita a interesses ignóbeis, à maldade e intenções baixas dos que estão próximo ou dos que estão longe, de pele negra ou branca, usando ou não a religião, não mata nessa criança – «Ussu de Bissau» - a vontade de viver.
O livro é um apelo à reflexão «sobre as mentalidades que toleram a existência de crianças talibés e outros maus tratos a menores». Talibés são rapazes entre os 3 e os 15 anos confiados a um mestre corânico sob pretexto de educação religiosa islâmica, forçados à mendicidade e submetidos a privação, exploração e tortura, violando as disposições do próprio Alcorão. A narrativa tem como como pano de fundo o que se passa «na África Ocidental, em particular entre o Senegal, Gâmbia, Guiné-Conacri, Guiné-Bissau e Mali».
O mundo precisa destes contributos.
E de boa literatura.
Parabéns ao autor.

José Batista d’Ascenção

2 comentários :

  1. Zé,sei que sou suspeita para comentar este texto. Contudo, não posso deixar de dizer que não consigo imaginar um texto que dignifique melhor em simultâneo esta causa, o Ussu de Bissau e o autor Amadu Dafé.
    Ao Zé deixo mais uma expressão guineense " no djunta mon". Com o seu coração que vê muito além, sei que vai entender.
    Muito obrigada.

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  2. Obrigado eu querida Sandrinha. Não há razões de suspeita: a opinião e os sentimentos são livres. E só assim podem ter validade e beleza.
    No djunta mon.
    Beijinho.

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