quarta-feira, 7 de julho de 2021

Na literatura: princípios, preconceitos e contingências da natureza humana


Os dois últimos livros que li - «O farmacêutico de Auschwitz», de Patricia Posner, e «Philip Roth, Némesis» - causaram-me forte impressão, mas não por que o fundamental de cada uma daquelas obras seja estranho à generalidade das pessoas.

Na primeira terá sido, talvez, por serem tão clara e coerentemente expostos os aspectos mais sinistros da natureza humana, manifestados durante o nazismo, por pessoas cordiais e simpáticas, com boa educação e formação académica dita «superior», que nunca os admitiram nem deles se arrependeram. Mais chocante ainda é a aceitação e apoio público que vieram a receber da população alemã, desejosa de esquecer a sua identificação com a política de um génio político louco e criminoso, após julgamentos tardios e indulgentes, com defesa paga com os ganhos do ouro arrancado das dentaduras dos cadáveres das vítimas.

No segundo daqueles livros, é a mestria do autor a destacar as contingências da vida e a importância que a sorte e o acaso jogam no percurso de cada ser humano («o acaso – a tirania da contingência – é tudo», pg. 180). A personagem principal, órfão de mãe, que não conheceu, e filho de um ladrão que cedo desaparece do seu contacto, recebe dos avós maternos, pessoas pobres, uma educação sólida, firmes princípios e um exemplo de vida que nunca esquece. A sua condição de pobre não impede os encontros felizes com gente que vale a pena, que o estima e lhe quer profundamente, como é o caso da sua namorada, que pertence a uma família de boas posses. O que ele não entende é a invocação de um Deus (qualquer) perante a epidemia de poliomielite que ceifa vidas ou estropia corpos de umas crianças ou jovens e não de outros, sem se conhecer (ao tempo da segunda grande guerra) o modo de a evitar. E a sua descrença e revolta mantém-se e perdura por também ele vir a ser um desses corpos mutilados para sempre, o que o fez afastar-se violentamente e em definitivo da jovem que lhe devotava um amor incondicional.

Uma relação possível entre os dois livros pode encontrar-se na página 118: «E qual é o papel de Deus no meio de tudo isto? Porque é que ele põe uma pessoa na Europa sob ocupação nazi (…) e a outra no refeitório de Indian Hill [EUA] diante de um prato de macarrão com queijo?»

José Batista d’Ascenção

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