História escrita há já muitos anos para os meninos e com os meninos. O original, em formato digital perdeu-se, restando apenas um exemplar impresso com as ilustrações difíceis de reproduzir, motivo por que se publica apenas o texto.
O Gato Jarbas
I - Pesca com "chapo"
Era uma vez um menino que vivia perto de uma velhinha, com quem passava muito tempo. Na sua terra havia um rio e nesse rio andava sempre um barco.
Um dia, o menino passou pela casa da velhinha, cumprimentou-a com um beijo, e foi para o rio pescar. Como companhia levou consigo o seu gato Jarbas.
Passaram a manhã no barco, admiraram a paisagem, ouviram os passarinhos nos salgueiros das margens, enquanto esperavam com as canas viradas para fora e os anzóis presos aos fios, dentro de água. O Jarbas ia dormitando, muito preguiçoso, enroscado em cima do casaco do menino que estava dobrado à proa do barco.
De repente sentiram um puxão numa das canas. Batis, assim se chamava o menino, pegou rapidamente na cana, levantou-a bem alto e imediatamente um peixe caía dentro do barco, aos saltos. O Batis precipitou-se para apanhar o peixe e metê-lo no balde que estava ao fundo, na parte de trás do barco. Mas o peixe escapou-lhe das mãos e continuava a saltar. Quem esteve sempre à espreita com os olhos muito abertos foi o Jarbas. Aquele malandro logo que viu um peixe tão grande, pensou em comê-lo! Ainda tentou disfarçar, mas, quando viu que o Batis não conseguia segurar o peixe, que lhe escorregava das mãos, deu um enorme pulo e apanhou-o entre as patas. Foi então que sentiu uma enorme vontade de lhe dar uma trinca. Havia muito tempo que o Jarbas não comia um saboroso peixinho.
O que o Jarbas não imaginou é que a sua gula o levasse a escorregar e, em vez de ficar com o peixe, acabou por cair dentro de água.
- Cachapum!...
O Batis ficou muito aflito porque o Jarbas espatinhava dentro da água e assoprava, todo molhado e cheio de frio. Dobrou-se, com todo o cuidado, e puxou o gato completamente encharcado para dentro do barco. Deixou-o sacudir-se, e depois gritou-lhe:
- Jarbas, és um comilão desavergonhado!
O dia passara, já começava a anoitecer. Estava na hora de regressar. O Jarbas estava com frio e podia constipar-se. Batis remou com força para chegar à margem. Estava muito cansado, com fome e com sede. Faltavam-lhe as forças e a margem parecia tão longe!... Jarbas já dormia, enrolado aos seus pés. Precisava de ajuda. A noite tinha chegado depressa e estava muito escura. Sentia-se com medo e sozinho. Só lhe apetecia chorar. De repente, como que por magia, a luz da lua fez o rio prateado e o barco deslizara até à margem.
Em muito pouco tempo dormia tranquilo na sua cama azul...
II - Queda na floresta
Na manhã seguinte o gato Jarbas acordou, esfregou os olhos e disse:
- Sinto-me muito bem disposto. Ontem, o dia não me correu bem, tomei um banho à força, mas hoje já estou pronto para me divertir.
Saiu de casa, saltitando e cantarolando, à procura do Zeferino, um gatarrão muito pachorrento, que habitava na casa da velhinha, ali ao lado. Chamou por ele:
- Ó Zeferino! Zeferiiiiiiino!... Onde estás, companheiro?
O Zeferino ainda dormia, em cima de um pau que estava colocado bem alto, de parede a parede, no pátio da casa. Era ali que gostava de dormir: via tudo ao acordar e ninguém o incomodava. Como tinha muito equilíbrio, orgulhava-se de se deitar lá no alto e dormir sossegado, sem medo de cair. Mas agora, com o Jarbas a gritar daquela maneira, ia-se assustando a sério e por pouco não escorregou.
- Ó grande bruto - respondeu zangado - não sabes ter mais calma, o que é que te deu? Ainda é tão cedo e já tu vens aí aos gritos acordar-me. Espera, que já desço.
- Vim convidar-te para irmos juntos fazer qualquer coisa interessante, hoje. Sinto-me tão bem que tenho vontade de me divertir. Vá lá, anda daí. E se fôssemos subir a umas árvores, para afiarmos as garras e para ver se apanhamos algum passarito desprevenido?
O Zeferino achou aquela ideia um tanto estapafúrdia, àquela hora da manhã... E pensou: «Este Jarbas é incrível!» Porém, como já estava acordado aproveitou para se espreguiçar, coçou as garras no pau, lambeu a pata, passou-a pela cara e disse:
- Pronto, vamos lá então.
Partiram em direcção à floresta. Chegados ao carvalho grande, foi com gosto que subiram o enorme tronco e, com custo, de ramo em ramo, atingiram altura. O Zeferino, olhando em redor disse para o Jarbas:
- Que bonita é a paisagem vista daqui. Ora repara, não te parece um imenso mar de verde? É mesmo bonito!
- Chiiiiiiiuuu! - disse-lhe o Jarbas baixinho - Cala-te e repara, olha nesta direcção - e apontava com a pata.
O Zeferino até ficou triste. Aquele maroto não queria saber de coisas bonitas. Às vezes parecia mesmo um insensível. Que estaria ele a ver?
Entretanto, já o Jarbas caminhava sobre um ramo fino, em direcção à ponta, tão concentrado que nem se apercebia que o raminho se dobrava cada vez mais. E foi então que o Zeferino reparou: meio metro à frente de Jarbas estava um ninho onde três biquinhos amarelos se abriam exageradamente à medida que os ramos abanavam. Os pequeninos confundiam o avanço terrível do Jarbas com a chegada da mãe, trazendo-lhes comida. Zeferino sentiu um arrepio. Não se conteve e gritou:
- Jaaaaarbas!... Que vais fazer?!
Jarbas deu um pulo, o ramo abanou violentamente, o ninho parecia um baloiço descontrolado, as cabeças dos passarinhos bateram umas contras as outras, mas nenhum deles caiu do ninho. Os pássaros adultos, que acabavam de chegar com o bico carregado de sementes, ainda viram a ramagem num rebuliço, mas trataram de acalmar os filhotes. O que os assustou igualmente foi um som forte lá em baixo... Jarbas estatelou-se no chão e ficou esticado, como morto.
Zeferino, muito abalado, desceu cheio de nervos e, com muito custo, aproximou-se do amigo. Olhou-o primeiro, preocupadíssimo, e depois fez-lhe carinhos com a pata.
- Amigo! Amigo!, diz qualquer coisa! E continuava a abaná-lo com meiguice. Jarbas não dava sinais de vida. Zeferino sentiu as lágrimas a correrem-lhe pela face. E ficou a olhar, a olhar...
Então, passado algum tempo, Jarbas abriu os olhos.
- Jarbas! Oh, ele está vivo!, disse o Zeferino, com grande contentamento.
- Como estás, és capaz de falar? Mas não fales, não digas nada, descansa mais um bocadinho...
Jarbas fez sinal com a pata. Estava atordoado, mas teve forças para sossegar o amigo. Zeferino apanhou umas folhas, aconchegou-as num montinho, como se fosse uma cama, e arrastou o amigo para cima delas. Depois disse-lhe: - Descansa mais um bocadinho, eu já volto.
E correu com quanta velocidade tinha, em direcção a casa de Batis. A porta estava entreaberta e ele entrou a grande velocidade por ali dentro. Chegado ao fundo do corredor já havia tombado dois vasos de plantas e ainda embateu numa cadeira que tinha vários livros. Estava com o pêlo todo eriçado e bufava. A atrapalhação nem o deixava pensar. Batis, que estava a arrumar livros numa prateleira, sentiu aquela confusão toda mas nem teve tempo de ralhar ao Zeferino. Primeiro, ainda esteve para lhe pregar um pontapé, mas logo percebeu que o gato, assim agarrado às suas calças e a puxar, queria dizer-lhe qualquer coisa.
- Que é, Zeferino?... mas o Zeferino já estava outra vez à porta, aos pulos e a soprar, dava corridas na direcção de Batis e logo voltava para a rua.
Batis estava intrigado, quando chegou à porta já o Zeferino corria para a floresta. Seguiu-o. Quando chegou ao carvalho grande ainda o Jarbas estava deitado, a miar baixinho. Reparou então que ele chorava. Pegou-o ao colo e regressou a casa. Zeferino vinha atrás, preocupado.
Chegado a casa, Batis pousou Jarbas no cestinho dele e foi ter com a velhinha que morava perto.
- D. Raquel, o Jarbas está bastante mal. Penso que caiu do carvalho grande. Podia ir comigo visitá-lo e dar-me algum conselho útil?
- Vieste em boa hora, Batis, realmente agora tenho tempo livre. Vamos lá ver esse enfermo. Não te assustes. Dos gatos se diz que têm sete vidas.
Quando D. Raquel chegou perto de Jarbas, examinou-o com os olhos e com as mãos. Finda a observação, afirmou:
- Bem te disse, Batis, este gato não tem doença de perigo. Agora, atenção, logo que o Jarbas esteja recuperado, daqui por dois dias, vão ambos a minha casa, precisamos ter uma conversa. É muito importante, não se esqueçam. Fico à espera.
E saiu.
III - Conversa útil
Passados dois dias, Jarbas ainda sentia algumas dores, mas, tal como tinha previsto a D. Raquel, já se encontrava capaz de andar e sentia novamente um grande apetite. E foi ele mesmo, manhã cedo, a lembrar Batis de que naquele dia deviam ir a casa dela. Partiram, logo depois de se prepararem, muito entusiasmados.
Chegaram ao pátio da casa da D. Raquel e já ela os observava da janela. Deitou os olhos ao pau onde o Zeferino gostava de dormitar e disse-lhe:
- Zeferino, acorda e vai esperar as visitas.
Zeferino abriu um dos olhos, enquanto continuava a dormir com o outro, pareceu-lhe que vinha lá o amigo Jarbas, mas foi preciso nova ordem da D. Raquel para o despertar completamente.
Zeferino desceu, correu para os amigos, aos pulos, antes ainda de lavar a cara. Ficou bastante contente de ver como Jarbas já quase não coxeava.
D. Raquel chamou os três para a saleta de estar. Em cima da mesas estavam uns biscoitinhos, sem açúcar, que ela fez questão de distribuir por todos, dando um pires cheio a cada um.
Depois agradeceu a visita e sem mais demoras começou a dizer o seguinte:
«Meus amigos, em especial meu amigo Jarbas: Temos que aprender a não ser comilões e a saber respeitar todos os seres vivos. Não podemos tratar mal os que são mais fracos do que nós, porque também não gostamos que nos façam mal. E fiquem sabendo que, muitas vezes, aqueles que estão mais desprotegidos, andam tristes e sofrem muito, têm um coração bom e até tratam bem e ajudam os que os fazem sofrer. Olhem que os passarinhos que estão nos ninhos são como os bebés que estão no berço. Precisam de carinho, que os pais lhes dão, como as criancinhas precisam dos cuidados dos seus pais e das pessoas mais velhas. É preciso que todos aprendamos a viver em amizade e em paz. Aqui o Zeferino, quando era mais novo também fez uns disparates. Mas agora já está ajuizado.»
O Zeferino confirmou, interrompendo a D. Raquel.
- É verdade, Jarbas! E sabes que mais, se não fosse a D. Raquel ter-me dado uns ralhetes ainda havia de ter feito mais maldades. Mas ela soube ajudar-me. Fiquei tão agradecido que lhe pedi para vir viver com ela. Foi desde então que passei a ser o seu gato.
D. Raquel interveio novamente.
- Deixa lá, Zeferino, não te diminuas assim. Afinal tu eras um gato bem fofinho. Eu, se calhar, até fui muito áspera contigo. De resto, o Jarbas também não tem mau carácter. É mesmo um bom gatinho. E eu sei que o Batis lhe ensina coisas boas. Só que ele tem sido um bocadinho estróina. Mas, agora, que apanhou um banho à força e teve uma grande queda vai seguramente aprender a ser mais cuidadoso. É ou não é, Jarbas?
- Pode estar certa disso, D. Raquel. E muito obrigado. - Respondeu Jarbas.
O Jarbas, muito compenetrado, sentia-se feliz com os seus amigos e pensava em como eram bons os conselhos que lhe davam. Deu um pulo, saltou para o colo da D. Raquel e fez-lhe uma festa com a pata.
D. Raquel, muito contente, afagou Jarbas, passou a mão por Zeferino, fez um aceno a Batis e disse:
- Bom, bom, agora todos para a mesa. Preparei-lhes um almoço de que vão gostar.
Filipe Gama, João Gama e José Batista
Em homenagem aos meus filhos, pelo privilégio de ter acompanhado de perto o seu crescimento e pelas alegrias que me têm dado.
José Batista
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