quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Aspectos da vida dos pobres, numa aldeia do interior, no tempo de Salazar

As pessoas do povo com mais de setenta anos sabem, de experiência sofrida, o que era a vida das gentes humildes do país há pouco mais de quarenta anos, tantos quantos tem o 25 de Abril. Crianças e jovens andavam descalços, poucos iam à escola, a que parte deles chegava depois de percorridos três ou quatro quilómetros a pé, com fome e a tiritar de frio, no inverno, alguns deles tendo tomado um gole de aguardente para “aquecerem”… O clima social e familiar era, não raro, de grande violência física e verbal e os professores primários, alguns apenas regentes pouco mais que analfabetos, confirmavam diariamente nas palavras e nos actos o terror que se abatia sobre as crianças. Mas os adultos e os velhos presos à terra pela penúria, pela incapacidade e pela ignorância não viviam em melhores condições. Fosse nos tempos da guerra civil de Espanha, fosse por alturas da segunda guerra mundial ou depois, durante as décadas de cinquenta e de sessenta (do século XX), os tempos eram particularmente maus para os pobres: a falta de perspectivas para os jovens durante os anos trinta, quarenta e cinquenta ou o medo da guerra colonial mais tarde, a ausência de assistência gratuita na saúde e de pensões de velhice ou incapacidade para as pessoas do mundo rural faziam da existência um complexo de incerteza e medo permanentes. As habitações eram ordinariamente horríveis, sem electricidade nem água canalizada nem quarto de banho, mal isoladas e sem divisões que dessem alguma privacidade a numerosas ranchadas de filhos, os quais dormiam “em grupo” em esteiras ou enxergas de palha. As condições de higiene eram tão precárias que era comum as pessoas e as tarimbas onde dormiam ficaram inçadas de piolhos, pulgas e percevejos.
Assim mesmo, não faltava vontade de viver e espírito de humor em miúdos e graúdos, especialmente quando algum cibo acalmava o estômago e o estado de saúde o permitia. E isso era traduzido em muitas histórias contadas por pessoas que jura(va)m que também com muito sentido de humor, ora alegre ora triste, foram vividas. Seguem-se algumas delas.

De algumas localidades se dizia que era tão intensa e generalizada a falta de víveres que até os cães, quando ainda conseguiam reunir forças, “sentando-se” nos quartos traseiros, não diziam mais que: «fòme! fòme-fòme! fòme-fòme-fòme!», a que respondia um ou outro galo, cioso das suas pitas, firmando-se nas patas, enchendo o peito e esticando o pescoço: «sempre cá assim foi…!»

E, de certo padrasto, contava-se que, à mesa, em tom seco e duro, perguntou aos enteados:
- Meninos, quereis pão?
- Queremos sim senhor – responderam eles.
Logo tornou o padrasto:
- Como é que se diz!
- Nããão… senhor – balbuciaram em voz sumida as crianças.
 - Dizei assim sempre, quando quiserdes mais, pedi – rematou o padrasto.

Noutra situação, dizia-se que certo marido, em tarde de menos afazeres, procurou uma via alternativa para catar os piolhos à mulher: sentaram-se ambos nas escaleiras no acesso exterior da casa, ele num degrau mais em cima e ela noutro mais em baixo, entre as suas pernas. Com ambas as mãos o homem ia desviando os cabelos e caçando os insectos, um a um, após o que os largava sobre a laje de xisto do degrau e os esmagava com… um martelo. Algo surpreendidos com a nova metodologia de espiolhar, os passantes sorriam e alguns comentavam, sendo que um fez uma sugestão capaz de aumentar a rapidez e eficiência do processo, nos seguintes termos: - porque não aplicar a pancada sobre os bichos no sítio onde eles causam prejuízo? Diz-se também que, como prova da diversidade de sentidos de humor, riram o proponente da sugestão e o eventual executante, mas não achou graça a beneficiária da desparasitação.

Pouco divertido e pungente é o relato do caso de uma criança que, um dia, correu para o avô e lhe disse com extrema convicção:
- Ó avô, avô, pão com queijo é tão bom!
Ao que o avô, espantado, perguntou: 
- Meu filho, onde é que tu comeste pão com queijo?
Resposta imediata do petiz:
- Não comi, avô, vi que estavam a comer… do outro lado do rio!

A fome é negra, dizem as tais pessoas de oitenta anos. E o que mais nos poderiam dizer, se tivéssemos tempo para as ouvir!

José Batista d’Ascenção

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