terça-feira, 18 de abril de 2017

«A Mancha Humana», livro de Fhilip Roth, Editado por «Leya» e «Livros RTP». Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues

Um livro extraordinário, um romance com uma arquitectura irrepreensivelmente delineada, permeado pela ligação à actualidade e à vida “concreta” de personagens ricas e densas, muito bem “esculpidas” (os traumatizados da guerra do Vietname revelam um horror psicológico deveras realista) e até de pessoas concretas (o casal Clinton não sai favorecido no “retrato”…). A capacidade e sabedoria do autor são extensíssimas, vastas, agudas e profundas. A leitura cativa, tanto quanto surpreende, do início ao fim. A tradução é portentosa, facto percebido mesmo por leitores como eu, que não têm conhecimentos de línguas que lhes permitissem uma leitura franca do escrito original. A linguagem e as situações são cruas, tão cruas como a realidade vivida e protagonizada pela generalidade das pessoas. A natureza humana mostra-se em acções e pensamentos que impressionam, chocam ou comovem, num dinamismo narrativo a que seria difícil ficar indiferente. Em certos momentos da leitura, ocorreu-me que o título devia ser «A Nódoa Humana», mas acabei sempre a recomendar humildade a mim mesmo. No prefácio, Clara Ferreira Alves, refere que …«é o romance mais humano, humanista e humanizado e humaníssimo que ele [Fhilip Roth] escreveu e que se escreveu na América das últimas décadas». Falta-me competência para confirmar ou infirmar, mas não tenho dúvidas de que a dimensão/nível da obra estaria ao alcance de pouquíssimos autores. 
Seguem-se alguns registos de momentos que me fizeram parar e voltar a ler.
«Há algo de fascinante no que o sofrimento moral pode fazer a alguém que nada indicia ser uma pessoa frágil ou fraca» (pg. 31). Creio que sim, mesmo nas situações mais horríveis.
«A nossa compreensão das pessoas não pode deixar de estar sempre, na melhor das hipóteses, ligeiramente errada.» (pg. 41). «Por muito que o mundo esteja cheio de pessoas convencidas de que nos conhecem, ou a qualquer outro, por dentro e por fora, na realidade é incomensurável o que não se conhece. A verdade a nosso respeito é infinita. Assim como as mentiras.» (pg. 361). «Os filhos, que transportam a identidade do pai nos seus genes e por sua vez a passarão aos seus próprios filhos, pelo menos geneticamente […], tangivelmente, nunca têm um conhecimento completo de quem são e de quem foram.» (pg. 367). «Ninguém sabe a verdade de uma pessoa, e com muita frequência […] a própria pessoa menos que as outras.» (pg. 377). «O que nós sabemos é que […] ninguém sabe coisa nenhuma. […] É espantosa a quantidade de coisas que não sabemos. E mais espantoso ainda é o que passa por saber.» (pg. 246).
…«Cada erro que um homem é capaz de cometer tem geralmente um acelerador sexual.» (pg. 56).
«Como a palavra perfeita pode revelar ou perder uma pessoa! O que queima, o que destrói a camuflagem, o disfarce e o encobrimento? […] é a palavra certa dita espontaneamente, sem precisarmos sequer de pensar» (pg. 111).
«Nos cerca de seis quilómetros quadrados e meio daquela […] área residencial de uma cidade de Jersey […], assim como por todo o país durante a juventude de Coleman, existiam rígidas distinções […] entre classes e raças, santificadas pela Igreja e legitimadas pelas escolas.» (pg. 153).
«A vida […] não podia, nem durante meio minuto seguido, expurgar-se da sua instabilidade inerente, quanto mais deixar-se reduzir a uma essência previsível.» (pg. 155). […] Com facilidade, …«a vida pode ser uma coisa em vez de outra e […] um destino pode ser acidental… e […], por outro lado, um destino pode parecer acidental quando é impossível as coisas serem, jamais, diferentes do que são.» (pg. 156).
Sobre situações que não são «o momento indicado para se deixar subjugar pelo fenómeno quase patológico do amor maternal: […] Não precisamos de assassinar o nosso pai; o mundo encarrega-se disso por nós. […] Quem há para assassinar é a mãe.» (pg. 170). «Não querem as pessoas, na sua maioria, abandonar a porra das vidas que lhes foram dadas? Mas não abandonam, e é isso que faz delas elas». (pg. 171).
«Suponho que qualquer mudança profunda na vida implica dizer “não te conheço” a alguém.» (pg. 172).
«A liberdade é muito perigosa. E nada acontece durante muito tempo de acordo com os nossos próprios termos.» (pg. 177).
Sobre Faunia Farley, a amante tardia do viúvo Coleman Silk, casada com Les Farley, veterano da guerra do Vietname, um «azedo e achacado destroço humano»… (pg. 258), que a tratava violentamente e de quem se separou: «A miúda cuja existência se tornou uma alucinação aos 7 anos, uma catástrofe aos 14 e uma calamidade depois disso […], a miúda que desconfia de toda a gente, vê um vigarista em toda a gente e, no entanto, não está protegida contra coisa nenhuma, […] a miúda a quem pode acontecer, e aconteceu, tudo quanto há de execrável e cuja sorte não mostra qualquer sinal de mudar»… (pg. 198).
Sobre Delphine Roux, a professora universitária perturbada com o (e pelo) reitor Coleman Silk, que, na presença dele, voltava «ao seu medo de criança de estarem a vê-la por dentro e por fora. E também ao medo de criança precoce de não estar a ser suficientemente vista. Receando expôr-se, morta por ser vista: tremendo dilema.» (pg. 220).
«A mancha humana […]: nós deixamos uma mancha, deixamos um rasto, deixamos a nossa marca. Impureza, crueldade, mau trato, erro, excremento, sémen.» (pg. 282).
«A maior parte das pessoas incham de vaidade e mentem a respeito de talentos que apenas sonham ter;» (pg. 341).
…«Era estranho pensar […] que pessoas tão instruídas e profissionalmente corteses tivessem cedido com tanta facilidade ao ancestral sonho humano de uma situação em que um homem pode personificar o mal. Mas a verdade é que, além de existir, essa necessidade é imperiosa e profunda.» (pg. 352).
«Os problemas envelhecem. Às vezes envelhecem tanto que deixam de existir.» (pg. 373).
«O perigo do ódio é que, quando vamos por aí, o resultado é cem vezes pior do que prevíamos.» (pg. 374).
…«as palavras […] parecem corresponder cada vez menos à descrição do que as coisas realmente são. […] tudo é possível numa universidade, nos tempos que correm. Dir-se-ia que as pessoas que lá trabalham esqueceram o que é ensinar. Dir-se-ia que aquilo que fazem está mais perto da palhaçada». (pg. 375). «É muito difícil ler os clássicos; logo a culpa é dos clássicos. Hoje o estudante faz valer a sua incapacidade como um privilégio. Eu não consigo aprender isto, portanto alguma coisa está errada nisto. E há especialmente alguma coisa errada no mau professor que quer ensinar tal matéria. Deixou de haver critérios […] para só haver opiniões.» (pg. 377).
Referência à “selvajaria da Ilíada, o livro preferido de Coleman acerca do espírito voraz do homem. Nele cada assassínio tem a sua especificidade, cada um é uma chacina mais brutal do que a anterior.» (pg. 382), passagem que, de imediato, me remeteu para a frase: «a partir de certa idade todo o homem que se preze tem uma ilíada para contar», dessa notável escritora portuguesa contemporânea, Lídia Jorge, no livro «Os Memoráveis».  [Ed. D. Quixote, 2014, pg. 15]
…«É em momentos assim que amamos as pessoas, quando as vemos decididas a enfrentar o pior. Não corajosas. Não heróicas. Simplesmente decididas.» (pg. 388).
Sobre a trama do romance deixei tudo por dizer, de propósito. Assim, não mato (espero eu) a curiosidade de ninguém que pretenda ler o livro. E que livro!

José Batista d’Ascenção

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