domingo, 16 de julho de 2017

Histórias de antigamente: «O patrão e o moço»

Odre de vinho (Wikipédia)
Pelo primeiro quartel do século passado, no interior da Beira Baixa, onde a fome, o frio e o mau passadio condenavam violentamente a quase totalidade da população, a que nem os remediados, em grande parte dos casos, escapavam, o humor e o riso seriam abundantes, mesmo no meio da miséria e, talvez, uma forma de melhor a suportar.
Em histórias contadas ao jeito do narrador, dizia-se que certo criado era muito astuto e contrariava amiúde o patrão, que gostava dele, não só por ser bom trabalhador como por ser franco, um pouco segundo a ideia de que mais vale a crítica ou discordância cara-a-cara do que a louvaminha que esconde a faca(da) nas costas. Pois assim viviam o patrão e o moço, nome por que era chamado o criado para todo o serviço.
Como por aqueles tempos o trabalho começava ao romper do dia e não acabava nem com o pôr-do-sol, a bem dizer, o trabalhador do campo vivia mais como servo da gleba, senão mesmo escravo, muito longe das condições aceitáveis que, também os assalariados agrícolas, adquiriram a seguir ao 25 de Abril de 1974, data que tardaria ainda longas décadas.
Por isso, ao romper da alva, o patrão chegava-se ao palheiro, onde o criado dormia, e gritava:
- Ó moço levanta-te, é meio-dia e tu na cama!
Ao que o rapaz respondia:
- Ó patrãozinho, é meio-dia e eu em jejum.
Não se continha o patrão:
- Homessa!, ainda é noite e já querias ter comido?
Ao que tornava, ágil, o criado:
- Ó meu rico patrão: pois se é noite, quer ter a bondade de me deixar dormir?
E deixava-se ficar por alguns minutos mais.
Sempre zeloso de que o criado não perdesse tempo, na manhã seguinte, o patrão insistia de novo, assomando, cedíssimo, à entrada do palheiro e clamando:
- Ó rapaz acorda e levanta-te. Olha que o moço do vizinho já hoje encontrou um odre (1) de vinho.
Imediatamente, vinha a resposta:
- Patrãozinho, mais madrugou quem o perdeu! E é de justiça entregá-lo, sem lhe faltar uma gota...
E o trabalhador dava um pouco mais de descanso ao corpo, ele que não se poupava a esforços para merecer o que comia. De resto, o patrão reconhecia a sua honesta dedicação e, mais companheiro que superior, na partilha de árduas tarefas e, sobretudo, em tantos sofrimentos da vida, tinha alturas em que lhe comunicava o seu apreço, de forma sentida:
 - Sim senhor, o meu moço podia ser mais madrugador, mas é um bom trabalhador.
Ao que não tardava resposta:
- Mais vale quem Deus ajuda que quem muito madruga!
Durante as horas do dia, aos rigores do sol ou do frio, com o suor ou a chuva a encharcarem as roupas humildes, tantas vezes em farrapos, se o patrão dava ordens mais cruamente exigentes, o criado, com firme determinação e esperteza, tinha artes de lembrar as condições humanas necessárias para um trabalho mais… produtivo. Foi o caso certo dia, em que a fome apertava, que ele se impôs ao mando, protestando:
- Sem almoçar, não levanto mais uma palha do chão! (2).
E o patrão condescendeu, tentando gracejar:
- O meu moço moço tem: quando eu mando nele manda ele em mim também.

José Batista d’Ascenção

(1) Odre – saco feito de pele de animais para transporte de líquidos.
(2) «Não levantar uma palha» - não fazer nada.

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