quinta-feira, 13 de julho de 2017

Histórias de antigamente: «O ébrio, o burrico e o casaco»

Em tempos que já lá vão, pelos anos trinta do século passado, antes da guerra civil de Espanha, numa aldeia próxima de Castelo Branco havia um aldeão que, como a generalidade dos camponeses daquela e das outras aldeias do interior, gostava dos “copitos”, como era vulgar dizer-se por aquelas terras .
Pois esse senhor, cujo nome não vem ao caso, gostava de «molhar a palheta» sempre que tinha oportunidade: dizia ele que para esquecer as agruras da vida, quando se sentia triste, e para se não lembrar delas quando (já) estava mais animado. Além disso, o bálsamo deixava-o não só com uma alma nova como também lhe amainava as dores do corpo. Ora, a propósito do corpo, porque se queixasse e porque a mulher muito insistiu, acabou por ir ao médico. Ouvidas as queixas e feita a auscultação, o doutor foi terminante: melhor alimentação, bebida - só água!, e fumo nem vê-lo, excepto o da lareira. Ironicamente, o paciente ainda comentou com o clínico: para ser feliz só faltou abolir o trabalho e arranjar-me forma milagrosa de sustento!
Abatido, regressou o casal à vida diária: trabalho muito, e de sol a sol, comida pouca, sem bom conduto nem azeite que se visse para o tempero de batatas e couves, e copos de vinho só às escondidas da mulher, que porfiava com zelo na sua função de vigilante.
Certo dia, pelos Santos, o pobre homem lembrou a mulher de que devia fazer-se ao caminho até à cidade, com o burrito, para mercar na feira tal e tal ferramenta de que precisavam e sempre lhe trazia do tendeiro do costume a fazenda de que ela desse as devidas indicações e para os fins que entendesse por necessário.
Manhã cedo, tomou a desjejua, aparelhou o animal, pegou em magro farnel que a “patroa” aviara, mal ouviu os conselhos de que ela não descuidava, tomou o caminho e lá foi. Antes ainda do largo da feira, em taberna improvisada, mas muito frequentada por amigos e conhecidos, parou o nosso amigo, a dessedentar-se, bebendo e pagando, para si e para outros, e bebendo também, e muito, à conta de quantos lho ofereceram. Não passou dali: bebeu o que pôde, jogou cartas, e voltou a beber, quando ganhou, porque ganhou, e quando perdeu para comemorar a vitória dos adversários; fome mal a sentiu e apaziguou-a com o naco de broa e um “cheiro” de queijo, que tirou da bolsa, e assim deixou escapar o dia até o sol declinar para o acaso.
Trôpego das pernas e aliviado do pouco dinheiro que levava, meteu-se ao caminho de regresso, cambaleando atrás do burrico, por não ser capaz de montar e porque não se aguentaria em cima dele, e também porque ninguém melhor do que o animal o conduziria a casa. E que animal: uma mansidão só comparável à inteligência, pois que a alimária nem precisava que a prendessem enquanto esperava pelo dono: comia o que apanhasse a jeito: erva, palha seca ou alguma ponta de mato, sossegando a barriga e inspirando confiança e ternura.
Ora, o nosso homem, trupe-zupe, cambaleando para a direita e para a esquerda, os braços abertos, em paragens instáveis e arrancos mais instáveis ainda, prosseguia em marcha incerta, com calores demasiados para o frio que, naquela altura e àquela hora, já se fazia sentir. Com dificuldade, despiu o casaco e balançando-se, atirou-o para cima do burro, que seguia pachorrentamente. Passos depois, o viandante tropeçou em algo e quase caiu ao apanhar o que se lhe emaranhara nos pés: erguido o trapo, observou-o e reconheceu um casaco que supôs pertencer alguém que tivesse regressado da feira antes dele. Com esforço, deu-lhe balanço e fê-lo cair nas costas do burro. – A alguém há-de ser útil! – disse consigo. E avançou. Porém, novo tropeção, agora com queda, a motivar palavrão grosso e novo arremesso para os lombos do burro. Não andou muitos metros e novo tombo, com os pés embrulhados… num casaco. Raios partam tanto casaco! Como já estava em cima da ponte do Ocreza, abeirou-se da grade e atirou-o de lá abaixo.
Noite escura chegava a casa. Percebeu ao longe o seu estado a mulher que o aguardava. E não conteve as reclamações: - Olha para ti, homem! Nem para teu bem, nem por eu te pedir nem pelo médico te proibir! Arre! Que há-de ser de nós?
Ao que ele replicou, entaramelado: - deixa lá mulher, não tive oportunidade de fazer negócios. Como o taberneiro gritava: - É vinho do bom! Ai que se acaba, ai que se acaba!, fraquejei com gosto pela que podia ser a última vez. Mas olha, nem tudo perdemos – trago o burro carregado de casacos, por bom preço.
Ríspida, a mulher calou-o, repentina: Trocaste-os seguramente pelo teu – grande há-de ser o proveito!
Passada a fúria, aquela santa, muito conhecedora e condoída do seu homem, que não era mau, levantou-se ao raiar da manhã, fez o percurso do marido, que bem conhecia, e havia de encontrar o casaco, amarfanhado e descosido, dependurado de um galho a beijar as águas do rio Ocreza.

José Batista d’Ascenção

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