quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O ódio aos livros em regimes totalitários

Da leitura do livro «Fahrenheit 451», de Ray Bradbury, da «Colecção Mil Folhas», editado pelo jornal «Público», em 2003, em que se imagina uma civilização futura altamente tecnológica mas ditatorial, onde as casas são ignífugas (resistentes ao fogo), pelo que os bombeiros se dedicam a queimar livros em todas as habitações onde se suspeite que possam existir, prendendo os donos, para que aquele regime totalitário possa «garantir a felicidade dos seus súbditos», ocorreu-me alinhar uma série de citações, resultando um texto que é naturalmente da minha responsabilidade.
Num tempo em que a leitura mais reflexiva passa ao lado de um número extraordinariamente grande de pessoas, mais dadas à fugacidade das imagens e das frases curtas e sonantes, parece-me que temos muito a ganhar com o regresso sereno e calmo à (ou ao refúgio na) sabedoria dos bons livros. Vamos a esse texto:
«Primeiro, os livros apenas interessavam minorias, aqui e ali. Podiam permitir-se ser diferentes. O mundo era vasto. Depois o mundo encheu-se de olhos, de cotovelos, de bocas. A população dobrou, triplicou, quadruplicou. Os filmes, os magazines, os livros, foram nivelados, normalizados sob a forma de uma espécie de pasta de bolo. (pg. 57)
[…] O homem do século XIX, com os seus cavalos, os seus cães, os seus comboios; lentidão do movimento. Depois a aceleração, a câmara. Os livros resumidos. As condensações, os digests, os gráficos; tudo subordinado ao mote, ao fim percutante. […] Os clássicos reduzidos para compor emissões de um quarto de hora na rádio, cortados de novo para darem extractos de dois minutos de leitura, enfim, arranjados para um resumo de dicionário de dez a doze linhas. […] Para muita gente, Hamlet era apenas um resumo de uma página, num livro que declarava: “Finalmente todos os clássicos ao seu alcance; o seu nível de conhecimentos igual ao do seu vizinho” […] Da sala das crianças ao colégio e do colégio à sala das crianças. Eis o traçado da curva intelectual para os últimos cinco séculos. (pgs 57-58)
[…] Resumos de resumos. Resumo de resumo de resumos. A política? Uma coluna, duas frases, um título! E tudo se volatiza no ar! 
[…] Vive-se no imediato. Apenas o trabalho e, após o trabalho, a dificuldade de escolha de uma distracção. (pg. 58)
[…] O fecho éclair substitui o botão, pois o homem não tem tempo para reflectir nem para se vestir, de manhã. Não há hora de filosofia, nem hora de melancolia.
[…] A vida torna-se uma imensa glissagem. [manobra de aeronaves com o fim de aumentar a razão de descida] (pg. 59)
[…] Multipliquem as fitas desenhadas, os filmes; o espírito tem cada vez menos apetites. A impaciência, as auto-estradas percorridas por multidões que estão aqui e ali, em todos os sítios, em parte nenhuma. Os refugiados do volante. As cidades transforma-se em albergues de automobilistas. (pg. 60)
[…] Quanto maior é a população mais numerosas são as minorias. É preciso cuidado para não pisar os amigos dos cães, os amigos dos gatos, os médicos, os advogados, os comerciantes, os patrões [..] Todas as minorias com o seu umbigo bem limpo. Autores cheios de maus pensamentos fechem as vossas máquinas de escrever. E eles fizeram-no. […] Não é de admirar que os livros deixem de se vender, diziam os críticos. Mas o público, sabendo o que queria reagiu sem medo e deixou sobreviver os comic-books. E as revistas eróticas em três dimensões, naturalmente. (pgs. 60-61)
[…] Formando os estabelecimentos de ensino cada vez mais corredores, saltadores [em Portugal, suponho, não seria bem isto…] oportunistas, intrujões […] e assim sucessivamente, em vez de professores, críticos, sábios, artistas, a palavra “intelectual” tornou-se, bem entendido, a injúria que merece ser. Tem-se sempre medo do insólito; lembras-te do garoto que sabia sempre a lição, que se punha sempre à frente para responder enquanto os outros, sentados como ídolos de chumbo o odiavam? Não era esse brilhante indivíduo que vocês escolhiam sempre para espancar e troçar, depois de horas de estudo? Claro que era. Devemos ser todos parecidos uns com os outros. […] Assim, toda a gente fica satisfeita. Já não existem montanhas para esmagar os vizinhos e provocar comparações. (pgs. 61-62)
[…] As pessoas querem ser felizes. […] Não velamos nós para que estejam sempre em movimento, sempre distraídas? Não vivemos senão para isso, para o prazer, para a excitação?
[…] O ambiente familiar pode minar o ambiente escolar. Foi por essa razão que baixámos progressivamente a idade do jardim de infância e vamos agora buscar as crianças praticamente ao berço. (pgs. 62-63)
[…] [Não querer] saber o como, mas o porquê das coisas pode ser muito incómodo. A gente interroga-se sobre o porquê das coisas e, se insiste, podemo-nos tornar muito infelizes.» (pg. 63)
[…] Encham os homens de informações inofensivas, incombustíveis, que eles se sintam a rebentar de “factos”, informados acerca de tudo. Em seguida, eles imaginarão que pensam e terão o sentimento do movimento, enquanto realmente apenas se arrastam. Serão felizes […] Não os levem para terrenos escorregadios como a filosofia […] em que tenham de confrontar a sua experiência. É a fonte de todos os tormentos. (pg. 64)
[Uf!, finalmente, os aspectos redentores] O que [a personagem principal do livro] procura [espalhar livros, ou seja, o conhecimento] encontra-se no mundo, mas a única possibilidade para um homem de o conhecer noventa e nove por cento, é abrir os livros. (pg. 90)
[…] Todos devemos deixar qualquer coisa atrás de nós, ao morrermos. Um filho, um livro, um quadro, uma casa, uma parede, um par de sapatos. Ou ainda um jardim plantado de flores. Qualquer coisa que a mão tocou e para onde irá a alma no instante da morte. (pg. 152)
[…] Conserva sempre o espanto nos olhos. Vive como se fosses morrer dentro de dez segundos. Olha o mundo. Ele é mil vezes mais extraordinário que todos os sonhos que se podem fabricar em série» […] (pg. 153)
E no fim, neste livro, os livros salvaram-se. Amemos os livros.

José Batista d’Ascenção

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