segunda-feira, 28 de agosto de 2017

A curiosa «realidade» das crianças

Quando os meus filhos eram pequenos passei com eles longas horas: em casa, na prestação dos cuidados de que necessitavam, nos encontros familiares, com avós, tios e primos, e em passeios pequeninos, em que lhes fui mostrando a cidade em que cresceram e os seus arredores, ou em férias e passeios por esse Portugal fora, a fim de que conhecessem minimamente o país que é o seu. Tive, por isso, o privilégio de acompanhar o seu crescimento e de observar os seus comportamentos e reacções afectivas, bem como as asneiras e os «acidentes» que caldearam o percurso das suas vidas até serem adultos. E, não raro, deliciei-me com a maneira como viam o mundo à sua volta, fosse a realidade física, fosse a «psico-sociologia» dos crescidos. Opostamente, também houve momentos ou alturas em que as acções dos adultos lhes causaram viva impressão (ver figura). 
Certo dia, à mesa, convidei o mais velho a provar uma deliciosa feijoada para que ele olhava sem entusiasmo, enquanto mascava sem vontade uns quaisquer flocos instantâneos. À sua recusa firme, com receio de me desagradar, seguiu-se imediatamente um gesto de ternura e, olhando-me nos olhos, disse-me com a maior doçura: - Olha, pai, se eu gostar eu provo, «tá bem»?
Outra vez, no cimo de um miradouro de onde se contempla a cidade e se pode ver o mar, no horizonte, este mesmo filho, atirava pequenas pedras ao ar. Ao recomendar-lhe cuidado, não fosse alguma cair-lhe em cima (naquela zona, sem pessoas, não havia perigo de atingir alguém), perguntou-me: - Se eu atirasse uma pedra muito muito alto podia partir o céu?
Noutra altura, viajávamos pelo litoral oeste, nas proximidades da Praia de Santa Cruz, e parámos para ver o sol, disco vermelho, a escapar por detrás do oceano. Enquanto apreciávamos as belas cores do ocaso, comentei como era fácil perceber ali a esfericidade da Terra e, a brincar, disse-lhe: - Vês, o sol não toca na água, está lá muito looonge! Ao que tive resposta lapidar: - Claro que não toca na água, senão apagava-se!
Em ocasião diferente, este meu rapaz, bem pequenino ainda, num fim de tarde, quando o fui buscar ao jardim infantil, no percurso a pé para casa (a escolinha era ali ao lado), não foi capaz de esperar mais um pouco, para me perguntar com grande ênfase: - Pai, como é que nós sabemos qual é a nossa equipa?, querendo com a sua pergunta significar opção clubística. Não sabendo o que responder, diferi a resposta para quando chegássemos a casa e, enquanto comíamos alguma coisa de merenda (não ele, por um lado porque já tinha comido na escola e, por outro lado, porque a sua urgência naquele momento não era alimentar…), não achei melhor que falar-lhe da possível beleza do futebol, servindo-me do que sabia de um grande futebolista português chamado Eusébio. Devo ter sido esclarecedor, tal foi a atenção do meu ouvinte. Só era preciso saber bem qual tinha sido a equipa desse jogador fabuloso. Lá lhe disse. E foi assim que o menino arranjou clube, definitivamente, sem nunca esmorecer no seu entusiasmo.
Anos mais tarde, em conselho familiar, decidimos ir ver Braga do ar, numa avioneta de aluguer que descolou e aterrou no aeródromo de Palmeira. E lá fomos, a mãe, os filhos, o mais novo com três anos, talvez, e eu. Dadas umas voltas sobre a cidade, todas as vistas nos pareceram muito curiosas e agradáveis: a geometria dos grandes edifícios e dos quarteirões, os telhados vermelhos, os campos de milho das imediações e até um ferro-velho, visto lá de cima, nos pareceu bonito. Tudo muito harmónico e interessante. A seguir, mais umas voltas sobre Guimarães e a mesma impressão e o mesmo agrado. Depois a Póvoa de Lanhoso e idênticas sensações, mas só até ao momento em que, sobre o monolítico do Castelo, uma rabanada de vento abanou a aeronave, produzindo uns sons de tábuas a bater que me provocaram severo estremecimento interior acompanhado de auto-censura, em que pensei para mim próprio: - Estúpido, se esta coisa cai, morre a família inteira! E então, senti uma mãozinha leve e afável sobre um dos braços e uma voz meiga: - Pai, não tenhas medo. Eu estou aqui!
Estávamos todos. Dali a Palmeira foram apenas uns minutos. O triângulo aéreo fechara-se, descemos e regressámos confortavelmente a casa.

José Batista d’Ascenção

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