segunda-feira, 27 de maio de 2019

A dor como sintoma e alerta

Quando os meus filhos eram pequenos e tínhamos por vizinha do terceiro andar a D. Sameirinho, senhora muito simpática, educada e diligente, lembro-me do espanto silencioso do mais velho quando, após conversa no elevador, ficara a saber que, às vezes, a nossa estimada vizinha sentia dores na perna que não tinha, porque há muito lhe havia sido amputada e era substituída por uma prótese.
Acabados de entrar em casa, ele queria saber e eu comecei por lhe explicar que, em geral, as dores físicas resultam de lesões (reais ou potenciais) de que é transmitida informação aos nossos centros nervosos, a partir de terminações distribuídas pela superfície e por todas as regiões do interior do corpo, informação que essas zonas especializadas do cérebro processam e de que resultam as sensações que nos agradam ou nos desconsolam, nos proporcionam conforto ou sofrimento, etc. Pouco dado a esperas, o garoto não compreendia. - E, então, como é que vêm informações de um sítio que já não está no corpo, como a perna da D. Sameirinho? Lá adiantei que há situações muito curiosas e ainda mal compreendidas, em que o nosso cérebro pode manter uma «memória» de certos órgãos do corpo após a sua amputação, a qual, em certos casos e em certas pessoas, lhes faz sentir dores em partes do corpo perdidas, como braços e pernas, como se elas continuassem a existir. E para compensar a pobreza da explicação, disse-lhe que também pode acontecer o contrário: haver lesão causadora de dor, numa qualquer parte do corpo, mas não se sentir dor nenhuma… A perplexidade do rapaz, inversamente proporcional à sua compreensão, aumentava e traduzia-se em mais dúvidas. - Para que é que servem as dores? Se não existissem era muito melhor - insistia ele.
Aqui, senti-me mais à vontade, e fui por ali fora. Quando nos queimamos ou entalamos fugimos ou retiramos a parte do corpo afectada, por exemplo o dedo ou a mão, e se continuamos a ter dor fazemos alguma coisa para a tratar. Se não for suficiente, vamos ao médico. Ora, se nada nos doesse, nada fazíamos, o que podia ser muito perigoso, como no caso de uma ferida que deve ser desinfectada, caso contrário, a infecção podia agravar-se e conduzir à morte. Então, a dor, explicava eu, pode funcionar como aquela luzinha amarela a piscar no painel do carro quando há pouca gasolina. O exemplo funcionou: - Como daquela vez em que estivemos no Algarve, e essa luz avariou e tu andavas às aranhas, sempre com medo, a anotar os quilómetros quando enchias o depósito? - perguntou ligeiro. - Isso mesmo – respondi. Entendíamo-nos. Contudo, a insatisfação mantinha-se: – Mas eu não gosto de ter dores - volvia. E da minha parte: – Claro, ninguém gosta. Mas fica sabendo que, muitas vezes, se elimina a dor sem se resolver o problema (não acrescentei, na altura, que às vezes, nada mais resta…), o que, sendo necessário na hora, não pode fazer esquecer a causa do mal. E falei-lhe então de casos do desporto em que, caído um jogador durante uma partida qualquer, logo entra um técnico de socorro e, quantas vezes, aplica um «spray», que não faz mais do que eliminar as queixas, porque bloqueia as terminações nervosas dessa zona da pele, mas pode esconder alguma lesão mais grave, que o atleta, que devia parar imediatamente, não sentindo dor, e continuando a esforçar-se, acaba por agravar. Poucos anos mais tarde, voltaríamos a este tema, com um exemplo próximo: um dos filhos da D. Glória, a senhora que trabalhava na nossa casa, praticante de futebol, lesionou-se num joelho, mas, porque gostava muito da modalidade, fez tudo para continuar a jogar, enganando, enquanto pode, os responsáveis e até os técnicos do seguro de saúde. Resultado: acabou impossibilitado e afastado sem indemnização para tratamento porque o que sempre declarara foi usado contra si.
Na nossa conversa de tempos antes tinha vincado que a função dos analgésicos é aliviar ou minimizar a dor, mas que devemos ter cuidado para não mascarar as suas possíveis causas, de que as dores são sinais de alerta.
Também falámos da eliminação da dor pelas anestesias durante as operações cirúrgicas, que consistem basicamente no uso de substâncias químicas que bloqueiam ou inibem terminações nervosas, que podem limitar-se às zonas da intervenção (anestesia local), resultando na impossibilidade de a informação alcançar e ser processada nos centros nervosos, impedindo que sintamos dor.
E ainda recorri ao exemplo das queimaduras solares dolorosas, tão incomodativas, e da ausência de dor naquelas que resultam de contacto suficientemente demorado com objectos a altas temperaturas (queimaduras de 3º grau), porque, neste caso, as terminações nervosas são simplesmente destruídas.
Não adiantei mais porque, entretanto, aumentara o apetite do meu interlocutor, que sugeriu que fôssemos comer, já que a fome que sentia, no seu dizer, era tão má como as dores. 

José Batista d’Ascenção

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