quinta-feira, 5 de agosto de 2021

A crise actual da condição humana, segundo António Damásio

Excertos do capítulo 12 do livro «A Estranha ordem das coisas»


«A crise atual da condição humana é uma crise curiosa, pois embora as condições locais sejam distintas em cada ponto do mundo (…), as respostas que a definem são semelhantes, marcadas pela zanga, fúria e confronto violento, a par de apelos ao isolamento dos países e de uma preferência por governação autocrática. Mas a crise é sobretudo dececionante (…). Seria de esperar que pelo menos as sociedades mais avançadas tivessem ficado imunizadas pelos horrores da Segunda Guerra Mundial e pelas ameaças da Guerra Fria (…).

Os tempos que vivemos poderiam ser a melhor das épocas para se estar vivo» (…). Tais são as descobertas científicas, o brilho técnico e a quantidade de conhecimentos disponível e de fácil acesso ou as extraordinárias possibilidades de interligação humana à escala planetária (comunicação electrónica, viagens, acordos internacionais…), bem como o diagnóstico e a cura de doenças, que permitem o aumento da longevidade, que pode «prolongar-se de tal forma que se espera que os seres humanos nascidos após o ano 2000 possam viver, e bem, (…) até uma média de 100 anos. (…)

No entanto, para considerar os nossos dias como sendo os melhores de sempre seria preciso que estivéssemos muito distraídos, já para não dizer indiferentes ao drama dos restantes seres humanos que vivem na miséria. Embora a literacia científica e técnica nunca tenha estado tão desenvolvida, o público dedica muito pouco tempo à leitura de romances ou de poesia, que continuam a ser a forma mais garantida e recompensadora de penetrar na comédia e no drama da existência, e de ter oportunidade de refletir sobre aquilo que somos ou que podemos vir a ser. (…) Curiosamente, ou talvez não tanto, o nível de felicidade nas sociedades que mais beneficiaram com os espantosos progressos do nosso tempo mantém-se estável ou em declínio, caso possamos acreditar nas respetivas avaliações.

Ao longo das últimas quatro ou cinco décadas, o grande público das sociedades mais avançadas aceitou, com pouca ou nenhuma resistência, o tratamento cada vez mais deformado das notícias e das questões públicas concebidas para se enquadrarem no modelo de entretenimento da televisão e da rádio comerciais. As sociedades menos avançadas não têm demorado a imitar essa atitude.

(…)

Em geral, o público não dispõe nem de tempo nem de método para converter as quantidades imensas de informação em conclusões razoáveis e de uso prático. Além disso, as empresas que geram a distribuição e a agregação de informação ajudam o público de forma dúbia: o fluxo de informação é orientado por algoritmos da empresa que, por sua vez, influenciam a apresentação, de modo a adequar-se a uma variedade de interesses financeiros, políticos e sociais, a par do gosto dos utilizadores, para que estes possam continuar fechados no silo de opiniões que os entretêm.»

Afixado por José Batista d’Ascenção

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