Reflexão belíssima e assombrosamente corajosa e lúcida, recebida do Professror Galopim, que aqui se publica, com profunda gratidão e e não menos carinho.
Poder trabalhar e conviver fazem parte da felicidade que vivo, realmente. Felizmente, nada me impede de trabalhar e trabalhar, no meu caso, é escrever. Bem sentado, frente ao monitor, como já escrevi tantas vezes, não tenho idade, escrevo horas a fio, todos os dias (os reformados não têm Domingos nem feriados, nem férias) em blogues, jornais online e, em especial, no Facebok, para mais de 40 000 seguidores, na grande maioria, desconhecidos. Deles recebo centenas de comentários repletos de apreço, simpatia e afectos, que me enchem de felicidade e comedido orgulho, permitindo-me um conviver que, embora à distância, me encoraja a continuar. Comodamente instalado, aqui, frente ao monitor, vivo a despreocupação e a alegria de uma crónica de tempos idos, volto a ser o que fui nos anos de maior pujança da minha vida, mas mal me levanto da cadeira, os joelhos e as pernas trazem-me ao presente.
Entretanto, fui publicando livros, dois na Gradiva, quatro na extinta Editorial Notícias, vinte e seis na Âncora Editora, que tem, neste momento, mais dois prestes a sair, “Os Homens não Tapam as Orelhas”, em 2ª edição, com prefácio do General Pedro Pezarat Correia, e “Por Caminhos de Pedra Solta”, com prefácio de Helena Roseta.
Tenho plena consciência, sem que isso me incomode, que estou a descer os últimos degraus de uma vida cheia de trabalho e de afectos. Mas continuo a escrever, tendo sempre no pensamento o monte de projectos que sei que não irei concluir e isso, sim, já me incomoda. E esta é razão da minha pressa, estado de alma que marca o ritmo do meu trabalho. Quero ver publicados dois originais em fase de revisão: “A Professora”, uma história de vida de uma companheira e amiga de há mais de 80 anos, com quem “fundi” a minha, vai para 68, e “Do Laboratório à Cozinha”, que reúne mais de uma centena de experiências culinárias, muitas delas já publicadas na minha página do Facebook.
Durante quarenta e quatro anos, primeiro como aluno, depois como docente e investigador nas Universidades de Lisboa e de Paris, no domínio das rochas sedimentares e dos seus minerais, o laboratório, com recursos à química e à física, foi uma constante na minha vida.
Quando o limite de idade me arrumou, contra minha vontade, na “prateleira dos reformados e pensionistas”, toda a parafernália laboratorial que, por amor à arte, me entrara no coração, parece ter encontrado continuidade e conforto no espaço da cozinha. Gobelets, provetas e erlenmeyers viraram tachos, panelas e frigideiras; refogados, guisados e estufados tomaram o lugar de sulfatados, reduzidos e oxidados; átomos e iões foram substituídos por bagos de arroz, de ervilha e por feijões; a torneira com água fria e quente é a mesma, os queimadores de gás do fogão passaram a bicos de Bunsen e o forno fez as vezes da estufa. Quero com isto dizer que a cozinha é, por assim dizer, um outro percurso de prazer e, ao mesmo tempo, um escape.
Tenho em mãos o que se deverá intitular “Nós e as Pedras”, uma pesquisa no sentido de mostrar aos meus concidadãos que tudo, mas mesmo tudo, o que nos rodeia, incluindo nós próprios e toda a biodiversidade, tem origem nas pedras, no conceito antigo da palavra, que abrangia as rochas e os minerais. É, talvez, um sonho concluí-lo, mas o desejo de o dar como tal, dá sabor aos meus dias. Há ainda, no horizonte, dar cumprimento a uma incumbência, que consiste em passar a livro toda a documentação escrita e fotográfica existente sobre o Monumento Natural das Pegadas de Dinossáurios de Ourém-Torres Novas e a esperança de a poder cumprir é uma das razões da pressa a que aludi atrás. Finalmente, mais do que um sonho, antes uma deliciosa utopia: “E, assim, o tempo se transformou em palavras”. Acontece que não me seria difícil encontrar situações e pensamentos para concretizar esta ideia, mas…
Todavia, sempre disse, escrevi e mostrei que assim era, que “a utopia é a força que transforma o sonho em realidade".
Lisboa, dia de São João de 2025
A.M. Galopim de Carvalho
Afixado por: José Batista d'Ascenção