domingo, 27 de maio de 2018

Viver até quando? Que posso eu fazer ou faço pelos outros?

Se não erro, foi no ano de 1976 que o meu avô materno sofreu uma trombose. Do acidente resultou a paralisia do seu lado direito que o atirou para a cama de enfermo onde passaria os restantes nove anos que ainda viveu. Como perdera a sensibilidade desse lado do corpo era sobre ele que passava a maior parte do tempo por sentir menos o desconforto ou, eventualmente, a dor, supus eu. Este meu avô teve a visita frequente de todas as pessoas da aldeia e das aldeias mais próximas e de grande parte de todas as da freguesia. Era tido por pessoa incapaz de maldade, que nunca elevava a voz e não falava muito, excepto quando, ao serão, contava histórias reais da sua vida humilde, quase sempre cheias de humor ou, supremo êxtase para os netos, acedia com gosto a envolvê-los na narrativa dos seus contos, ouvidos com silenciosa atenção, por vezes até momento em que o sono vencia e o sonho acordado prosseguia em sonho sonhado.
A dureza da vida, os parcos recursos, o trabalho pesado enquanto houvesse luz do dia, em Portugal ou por terras de Espanha, nunca lhe quebraram a serenidade nem as suaves manifestações de carinho para os filhos e para os netos. Para a discrição da sua vida e a reserva introspectiva dos seus hábitos talvez contribuísse a surdez progressiva que, com o somar dos anos, lhe tornou o mundo cada vez mais silencioso.
Com grande consternação da família, particularmente dos netos, o avô ficou condenado à cama. O Dr Brandão, médico brusco e cortante, mas tido em elevada conta por quase toda a gente, recomendou a instalação de um sistema de cordas descendentes do tecto como única via para a prática de alguns exercícios de ginástica que alimentassem a esperança de alguma recuperação muscular, mas a sugestão acabou por não ser posta em prática.
Lúcido como sempre esteve, o avô, a pessoa adulta que eu prezava acima de todas, mesmo de cama, gostava de saber como passavam todos os da família ou conhecidos e de conhecer as novidades. Porém, a sua incapacidade auditiva, tirando a comunicação com a avó, desde que ela lhe falasse de frente, mesmo que em voz baixa, era uma barreira penosa que o isolava das suas visitas e do mundo. Como não me custava nada e era um gosto, passei a visitar o avô todos os dias dos tempos de férias ou de gozo de fim-de-semana, primeiro do liceu e depois da universidade, e ficava a falar com ele tempos longos, às vezes durante horas. Falava-lhe alto, muito alto, de tal modo que se ouvia na rua; escutava-o na sua voz sempre serena e baixa e respondia a tudo o que perguntava. Resultava daqui que o avô abria um sorriso largo logo que me divisava do seu leito/prisão, e eu ficava contente também. Das courelas (poucas) que possuía e das que eram «mistas», e do «quinhão» que nos pertencia, quase tudo lá para «trás-da-serra», às perspectivas da vida dos filhos e netos e de pessoas amigas ou conhecidas, até ao relato de como, havia muitos anos, se tinha declarado à avó, o que me deixou comovido e mais próximo ainda daquele homem, que vivera sessenta anos antes e de modo similar os mesmos sentimentos que eu confusa e ingenuamente já experimentara, as conversas revelavam-me um ser humano que não cabia nas dimensões do afecto, da ternura e da veneração infantis que por ele sentia até então. Creio que o avô se apercebeu disso.
Os tempos passavam. Cerca de quatro anos depois da sua imobilização, o avô, um dia, muito sério e afável, pediu-me para o ouvir com atenção: Ambos sabíamos que o seu cativeiro era irremediável e definitivo. Com a avó já tinha vivido tudo e ela estava prisioneira dele, como ele o estava da cama em que jazia. Queria morrer. Assim aliviava de vez e eu havia de sentir-me bem por ajudá-lo a atingir o repouso que já merecia e desejava. Isso era fácil, desde que eu o ajudasse, para o que bastaria fazer como me ia dizer. O avô procurava os meus olhos, com bonomia e serenidade mas, mal ergui os meus, ensombrou-se-lhe a face. Não faço ideia de como estava a minha cara, nem consigo descrever como me sentia, sei apenas que, silenciosamente, deixei cair umas lágrimas volumosas que se despenharam sobre a mão do avô estendida na minha direcção. O avô calou-se. A sua mão estava entre as minhas apertada num afago que eu quis que ele sentisse como eu sentia.
Daí em diante, corri sempre para o avô tão depressa quanto podia, logo que chegava de férias. Ele nunca mais me falou de morrer, embora eu soubesse que queria partir.
E ficou-me desde então um misto irresolúvel de perplexidade e desconforto ao pensar que se não fora a doença do avô eu não tinha descoberto a pessoa que ele era e de quem, afortunadamente, descendo.
Que saudades daquelas conversas, avô!

José Batista d’Ascenção

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