domingo, 22 de julho de 2018

Algumas particularidades da literatura e da política em Angola, entre os anos 60 e 80 do século XX

A convite de pessoa próxima, li com interesse o livro «mais um dia de vida – angola 1975» de Ryszard Kapuscinski (esta palavra tem acentos agudos no primeiro s e no n), em que o autor, um repórter da «agência de notícias polaca», imerge voluntariamente no cenário de guerra civil angolana, nos «meses que antecederam a independência (…) em Novembro de 1975», se bem que no prefácio se leia que «este não é um livro sobre a guerra civil angolana», mas sim «o relato da viagem por uma cidade que apenas existiu três meses: a Luanda entre o êxodo português e a proclamação da independência pelo MPLA.»
Neste livro, bem escrito, fácil e agradável de ler, mesmo descontando a eventual subjectividade do autor (que se movimentava entre os apoiantes do MPLA), percebem-se os interesses dos «partidos» então existentes no território: a FNLA (de Holden Roberto), a UNITA (de Jonas Savimbi) e o MPLA (de Agostinho Neto) e tem-se uma ideia clara da falta de confiança de cada um deles (partidos e respectivos líderes) nos outros dois. Dá-se conta também das expectativas de uns (portugueses incluídos) e do receio de outros em relação a uma eventual invasão da África do Sul e das movimentações militares que chegou a haver. Refere-se ainda a presença militar cubana, em apoio do MPLA, desmentindo o «mito de 100 000 cubanos a lutar em Angola» (pág. 161). São impressivos os retratos psico-sociológicos dos portugueses, amedrontados e na expectativa, discutindo possíveis acções, confusamente, e por nenhuma concluindo («discutir é do que os povos latinos mais gostam», pág. 75), num tempo em que, com afã, se construíam os caixotões de madeira para guardar haveres e pertences, que se  avolumavam no porto da cidade antes de rumarem a Lisboa. Nas zonas do interior, eram tão caricatas quanto perigosas as passagens pelos «postos de controlo» ao longo das estradas, agravando o receio de emboscadas.
Nas páginas 164 e 165, Kapuscinski fala de Agostinho Neto, um homem que fugia às entrevistas («porque naquela altura era difícil dizer alguma coisa optimista») e se queixava de não ter tempo para escrever poesia. O escritório de Neto tinha «uma mesa, estantes com livros do chão ao tecto [e] duas poltronas». Era um homem que não teria «mais de cinquenta anos, (…) de baixa estatura e ligeiramente encurvado, [com] movimentos lentos e ponderados. Usa[va] óculos, cabelo grisalho, e [parecia] um homem pouco enérgico ou apenas cansado». O autor escreve: «nunca o vi de uniforme e não me lembro de ele ir alguma vez à frente de combate.»
A leitura não (me) desiludiu.
Capa: Rui Garrido

Ainda com as origens imediatas do Estado de Angola muito frescas (mesmo que romanceadas…) deram-me os olhos num outro livro, este de José Luandino Vieira, datado de 1961, que eu ainda não havia lido: «A Vida Verdadeira de Domingos Xavier». É um romance com de menos de cem páginas, que se debruça sobe a «história de vida» de um jovem negro, optimista, bem formado e bem intencionado, tractorista de categoria reconhecida numa barragem em construção, que adora o seu bébé Sebastião e a sua mulher, Maria, e sonha com um futuro radioso para o seu filho, o qual, segundo o seu desejo, há-de estudar e vir a ser «engenheiro de máquinas, para fazer os tractores!».
Mas um dia Domingos Xavier é levado violentamente para que denuncie negros e brancos com actividade política não permitida. E então é agredido violentamente, repetidamente, numa tentativa de obrigá-lo à denúncia, a que não cede. Em resultado de crescente e hedionda tortura, pelos esbirros da PIDE, Domingos Xavier morre. Enquanto isso, Maria esforça-se desesperadamente por encontrá-lo, em vão. O livro termina com uma farra porque, «embora os tempos sóbrios chicoteiam os musseques, sai sempre farra em qualquer sítio, pretexto qualquer serve, a vida é sempre superior à morte.» (pág. 80)
Neste livro há muitos termos e expressões dos nativos angolanos «traduzidas» num glossário, no final. A construção frásica respeita o que seria a linguagem oral. E eu quedei-me a pensar na (completa) inutilidade e irrelevância do (chamado) «novo acordo ortográfico» no que respeita a uma pretensa unificação da língua portuguesa, que se quer diversa e plural, como inexoravelmente é e cada vez mais será.

José Batista d’Ascenção

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