segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Dos tempos dos meus avós aos tempos de hoje

Página de abertura do livro de leitura da
3ª classe (usado nas décadas de 50 e de 60
do séc. XX). O quadro resume a ideologia
da ditadura do «Estado Novo»
Meu neto:

Já não tinha bem presentes as reacções que acompanhei no teu pai quando ele tinha a tua (tão tenra) idade. Nos dias recentemente passados contigo, em que olhei bem para ti, e em que te senti contra o peito, pude observar como no início não seguias um objecto ou pessoa que se deslocasse à tua frente, como o teu sorriso era indefinido e como, apenas uma semana depois, eras capaz de acompanhar com o olhar quem (e o que) se movimentasse diante de ti. E como passou a ser aberto o sorriso com que respondias às festas que te faziam e arrulhavas de prazer quando tinhas a barriga cheia, estavas confortável e o sono ainda não tinha chegado. Também reparei como estás bem tratado, sempre bonito e bem vestido e limpinho, e como tens aumentado de peso regularmente e pareces respirar saúde. É um alívio, sabes? Nós, os avós (e os pais) temos sempre receio de que possa haver algum problema: seguimos com rigor os procedimentos recomendados pelo médico, vais às consultas estipuladas e à vacinação e ficamos satisfeitos por vermos clinicamente confirmado até aquilo que é de constatação óbvia e directa. Mas gostamos que no-lo afirmem e reafirmem e que se façam todos os testes a preceito. Tu sabes lá…
O ditador do «Estado Novo» glorificado,
tal como a sua obra, no mesmo manual.
Noutros tempos não era assim. Nem nas condições, nem nas possibilidades nem nos procedimentos. Muitas das preocupações eram as mesmas: alimentar-se bem, ter saúde, estar minimamente confortável, mas havia outras tão prementes, quais fossem as de ganhar o pão de cada dia, sobretudo, e de ter ânimo para porfiar nessa mesma luta, sem desfalecer. Falo-te da vida de pessoas humildes, muito esforçadas, que viviam num regime de falta de liberdade, muito limitadas no acesso à escola, num ambiente rural onde apenas alguns poucos, muito poucos, escapavam à tirania dos patrões, donos de quase todas as terras, às «prescrições» morais do senhor padre, e à fome que os torturava. E para as crianças que foram mandadas à escola (umas sim e outras não…) havia ainda uma outra autoridade aterradora: a professora ou professor que dispunha de uma régua com que podia bater desalmadamente nelas, e insultá-las e pô-las de castigo. E os livros, se soubesses como eram alguns deles… Um dia mostro-te. Havia meninos que faziam 3-4 quilómetros a pé para chegarem à escola, descalços, de barriga leve e fraca bucha a servir de merenda, ou sem ela, e regressavam a casa do mesmo modo, pelo mesmo caminho, com a mesma ou mais fome ainda. E era assim quando as temperaturas de Maio e Junho afugentavam o frio, como também era assim no Inverno quando chovia ou havia geada ou neve. E nos dias longos, regressar da escola não era grande alívio porque, como ainda havia sol, os meninos iam ajudar no pastoreio dos animais (ovelhas, cabras, às vezes também o porco…) ou em certas lides do campo (amanhar a terra, regar, sachar) ou da casa (preparar a comida, se havia com quê, acarretar água, cuidar de irmãos mais pequenos…). O médico era uma personalidade longínqua, lá na vila, sede do concelho, a mais de 10 Km: e não era costume visitar os pobres muito pobres, em caso de doença, porque não havia assistência médica e eles não podiam pagar. Assim se vivia lá nas terras do interior, ao tempo dos teus trisavós, de quem eu gostava muito. E também era comum viver em casas muito precárias, onde fazia muito frio no Inverno e um calor tórrido no Verão. Casas que não tinham electricidade (e por isso não havia boa iluminação, nem frigoríficos, nem televisões nem computadores, nem outros electrodomésticos). E as ruas, de noite, se não fizesse lua, eram escuras, às vezes sob um céu estrelado – muito bonito! -, porque a corrente eléctrica, que só foi inaugurada na sede do concelho em 1952, só mais tarde, nalguns casos muito mais tarde, chegaria às aldeias. E tão pobres eram as casas que não tinham água canalizada, nem casas de banho. Calcula, a maioria das pessoas lavava-se mal, era fraca a higiene, e por isso era frequente haver muitos piolhos nas cabeças e pulgas e percevejos nas roupas e nas enxergas de palha em que as pessoas dormiam. Dá para imaginar? – Pensa em alguém esfomeado, andrajoso, não raro desdentado, coberto de piolhos e descalço, analfabeto, a viver numa casa miserável e a trabalhar pesadamente enquanto houvesse luz do dia. Multiplicando pela grande maioria dos habitantes adultos do campo tem-se uma ideia do que era a vida nas aldeias de Portugal há cem anos e nas décadas posteriores até que eu, teu avô, nasci. Não vou carregar nos tons de negro referindo os tempos de guerra (1ª guerra mundial, guerra civil espanhola, 2ª guerra mundial e, mais tarde, a guerra colonial portuguesa), tempos de muito mau viver, por vezes com grandes sofrimentos na alma e no corpo.
Queres agora saber uma coisa curiosa? Apesar de todas as desgraças, ou talvez por causa delas, as pessoas aproveitavam intensamente os momentos de que pudessem retirar alguma felicidade. O teu trisavô, pelo meu lado materno, por exemplo, para além da satisfação no namoro e no casamento de mais de meio século com a mulher a quem gostosamente se dedicou durante todo o tempo (foi ele que mo disse), sentiu-se muito feliz com os esforços que fez, sozinho, para aprender a ler, e conseguiu. Assim como procurou sempre, num tempo em que «a lei» era simplesmente a do mais forte, respeitar toda a gente, especialmente os mais fracos (nota que ele acentuava muito), e foi respeitado por (praticamente) todos os que o conheceram. Eu testemunhei isso mesmo, no tempo privilegiado de convívio que tive com ele e de que te posso dar conta. Assim como do seu gosto pelo humor e pela alegria, que é um dever cultivar.
Não te maço mais, por agora. Hás-de brincar muito e crescer bem.
Beijinho. 

José Batista d’Ascenção

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