segunda-feira, 13 de agosto de 2018

«Se Isto É Um Homem», livro de Primo Levi

Não tendo dotes de analista político e sabendo de História o pouco que aprendi no liceu, acrescido da leitura banal de livros e jornais, mais a atenção comum que vou prestando à actualidade (política, informativa e ambiental), dou comigo a recear pelo futuro da humanidade em geral, e especificamente pelo destino próximo da população europeia, para terminar invariavelmente a pensar em jovens como os meus filhos e os filhos que eles têm ou hão-de ter.
No coração da Europa, o espaço geopolítico e económico a que, como portugueses, estamos lateralmente agarrados e de que desesperadamente dependemos, já sobram poucos dos que viveram os horrores da segunda guerra mundial, como memória viva do que não devia ter acontecido (nem deve acontecer) nunca. Sempre me pareceu que eram/são esses o principal travão (porque memória viva) a que as sociedades resvalem para a «repetição» da História, em guerras pavorosas, «escrevendo» a sangue e sofrimento as páginas sucessivas da «Ilíada» interminável que é a aventura humana no planeta.
Por isso imergi na leitura do livro em epígrafe. E tomara que muitos o lessem, como factor de reflexão sobre a desumanidade do Homo sapiens e medida preventiva de acções bélicas consequentes. O livro pertence à «colecção mil folhas», editada pelo «Público» em 2002, com tradução de Simonetta Cabrita Neto. Edição barata, não isenta de gralhas, uma limitação que não teria sido difícil de colmatar respeita a várias expressões em alemão não acompanhadas de tradução, entre parêntesis ou em notas de rodapé, o que facilitaria e aumentaria o gosto da leitura.
O motivo destas notas residem em citações como estas:
«Pode acontecer que muitos, indivíduos ou povos, julguem, mais ou menos conscientemente, que “todos os estrangeiros são inimigos”. Na maioria dos casos esta convicção jaz no fundo dos espíritos como uma infecção latente;» (introito, pág. 7)
(…)
«Os homens só muito raramente são capazes de raciocinar, quando o que está em jogo [iminente] é o seu próprio destino»; (pg. 34)
(…)
Sobre os comportamentos no Lager (quadrado com 600 metros de lado, cercados por duas redes de arame farpado, a mais interior electrificada com alta tensão, com dezenas de barracas de madeira e estruturas associadas, de um dos campos de concentração do complexo de Auschwitz): «Não acreditamos na dedução mais fácil e óbvia: que o homem é fundamentalmente brutal, egoísta e estulto na sua maneira de actuar, quando as superestruturas civis lhe são tiradas»…(pg. 97) «Julgamos, pelo contrário, que em relação a isso, nada mais se pode concluir, a não ser que, diante das carências e do mal-estar físicos obsessivos, muitos hábitos e muitos instintos sociais ficam completamente silenciados.» (pg. 98)
Mas, qual darwinismo extremo, é «digno de atenção este facto: verifica-se que existem entre os homens duas classes particularmente bem distintas: os que se salvam e os que sucumbem. Outros pares de contrários (os bons e os maus, os sensatos e os insensatos, os cobardes e os corajosos, os desgraçados e os afortunados) são muito menos nítidos»…, admitindo «graduações intermédias mais numerosas e complexas.» (idem)
(…) 
«Considera-se tanto mais civilizado um país quanto mais sábias e eficientes são as leis que impedem ao miserável ser demasiado miserável, e ao poderoso ser demasiado poderoso.» (idem)
(…)
«Na história e na vida parece às vezes vislumbrar-se uma lei feroz, segundo a qual “dar-se-á a quem tiver; tirar-se-á a quem não tiver”. No Lager, onde o homem está só e a luta pela vida se reduz ao seu mecanismo primordial, a lei iníqua está abertamente em vigor, é reconhecida por todos» [todos os prisioneiros, atenção - é a eles que esta passagem se refere]; (pg. 99)
(…)
Só mais uma citação, para ilustrar aqueles sempre raros exemplos que redimem a condição humana: «um operário civil italiano trouxe-me um bocado de pão e os restos do seu rancho todos os dias, durante seis meses; ofereceu-me uma camisola sua cheia de remendos; escreveu por mim um postal para Itália e fez-me chegar a resposta. Por tudo isto, não pediu nem aceitou alguma compensação, porque era bom e simples, e não achava que o bem devesse fazer-se para obter compensações.» (pg. 133)

Seria bom não esquecermos.

José Batista d’Ascenção

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