domingo, 16 de agosto de 2020

Toda a gente é pertença da Terra, mas a Terra inteira não é de toda a gente

Nenhum ser humano pediu para nascer, muito menos para nascer num lugar específico. Qualquer pessoa recebe a influência do meio a que pertence, e o seu sentir e pensar é modelado pelas vivências que teve, particularmente as da infância e as da juventude. Idealmente, cada cidadão devia poder viajar para onde quisesse e estabelecer-se e viver em qualquer local de qualquer país ou região, usufruindo de todos os direitos comunitariamente estabelecidos. Porém, o mundo, mormente o das relações (psico-)sociais (e económicas) dos humanos, não é harmónico, sendo que a (mera) condição biológica do Homo sapiens, como a de qualquer outro ser vivo, impõe, também ela, algumas limitações à distribuição geográfica da espécie (a maioria das quais foram resolvidas pela aprendizagem e pela técnica).
O “direito” de migrar para qualquer lado e de nele permanecer ou de partir novamente caberia particularmente bem aos portugueses, desde sempre propensos à abalada, não tanto por acção de algum “gene” que disponha à migração, mas antes pela necessidade material em resultado da pobreza do país. Sendo nós, portugueses, um povo de emigrantes, estamos também predispostos a acolher quem chegue à nossa terra, oferecendo o mais amistoso tratamento. Nos casos em que assim não é, assim devia ser.
O que precede vem a propósito de leitura desconfortante que fiz do livro “A Estranha Morte da Europa, Imigração, Identidade, Religião», de Douglas Murray, Edições Desassossego. Resumidamente, o tema refere-se à imigração em massa de pessoas para a Europa, o que fez aumentar a população de cidades e países europeus, como acontece em Inglaterra, em França, na Alemanha, na Holanda ou na Suécia, desencadeando problemas de integração que se traduzem em sentimentos de desconforto e de desconfiança dos cidadãos europeus. À falta de melhores respostas, os líderes políticos esforçam-se por convencer os europeus das vantagens da diversidade cultural e da economia, mas, para uma parte cada vez maior das populações do Velho Continente, a realidade contraria essas ideias. Na opinião do autor, acresce o esforço dos líderes políticos para convencer as pessoas de que devem sentir-se culpadas pelos (e penitenciar-se dos) antecedentes históricos que conduziram à actualidade, o que colide brutalmente, por exemplo, com os atentados contra civis inocentes ocorridos em Londres, Paris, Berlim ou Barcelona, perpetrados por fervorosos praticantes da religião islâmica. Ou seja: os políticos não têm sabido lidar com o problema: como a natalidade em muitos países da Europa é muito baixa, mas é alta entre os migrantes, as dificuldades só podem avolumar-se no futuro, porque não é curial que quem chega não possa abdicar da sua cultura e se exija aos anfitriões que reneguem a sua: não é assim em nenhum lugar, porque há-de sê-lo na Europa?, pergunta Murray. Para o autor é crescente o divórcio entre os políticos da situação e o eleitorado europeu, com reflexos “naturais” no aparecimento e crescimento de movimentos conotados com a extrema-direita do “espectro político”.
Lê-se e percebe-se que os argumentos têm muita força. A condição de ser livre, de ter ou não ter religião, a emancipação da mulher, entre outros problemas, estão sob ameaça. É indubitável que foi na Europa que, não obstante os erros, as falhas e as monstruosidades, se atingiu maior qualidade de vida e dignidade do ser humano, em termos sócio-económicos e culturais, bem espelhados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada em Paris. É por isso que tantos fogem para nós. Não se pode nem se deve pedir aos europeus que reneguem as suas origens histórico-culturais. Nem eles o devem permitir. É bom que lutemos pela separação entre estado e religião e pela independência entre religião e ciência. Foi assim que mais se aprofundou o conhecimento actual, que não é legítimo hipotecar. Do mesmo modo é imprescindível assumir a rejeição de algum sistema monolítico de valores sócio-político-religiosos que dominasse o poder e alterasse as condições existentes, de tal forma que os próprios descendentes dos que chegam - e que desejam ficar entre nós - já não gozariam dos privilégios que os migrantes vieram encontrar, porquanto a nossa sociedade se tornaria algo parecida com aquela(s) de que fugiram.

José Batista d’Ascenção

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