terça-feira, 24 de junho de 2025

Uma reflexão de última hora (pelo Professor Galopim de Carvalho)

Reflexão belíssima e assombrosamente corajosa e lúcida, recebida do Professror Galopim, que aqui se publica, com profunda gratidão e e não menos carinho.

Tenho dias em que o espelho da casa de banho e, sobretudo, o corpo físico me dizem, sem rodeios, os anos que já vivi. Não tenho qualquer problema em falar sobre um fim que se aproxima. Sinto-o, serenamente, todos os dias, como areia a fugir por entre os dedos. Quero e procuro festejar a vida em felicidade e é neste sentimento que, antes que seja tarde, faço questão de deixar a todos os que amo esta reflexão com o sabor de uma despedida natural, racional, tranquila e, direi mesmo, sorridente.

Poder trabalhar e conviver fazem parte da felicidade que vivo, realmente. Felizmente, nada me impede de trabalhar e trabalhar, no meu caso, é escrever. Bem sentado, frente ao monitor, como já escrevi tantas vezes, não tenho idade, escrevo horas a fio, todos os dias (os reformados não têm Domingos nem feriados, nem férias) em blogues, jornais online e, em especial, no Facebok, para mais de 40 000 seguidores, na grande maioria, desconhecidos. Deles recebo centenas de comentários repletos de apreço, simpatia e afectos, que me enchem de felicidade e comedido orgulho, permitindo-me um conviver que, embora à distância, me encoraja a continuar. Comodamente instalado, aqui, frente ao monitor, vivo a despreocupação e a alegria de uma crónica de tempos idos, volto a ser o que fui nos anos de maior pujança da minha vida, mas mal me levanto da cadeira, os joelhos e as pernas trazem-me ao presente.

Entretanto, fui publicando livros, dois na Gradiva, quatro na extinta Editorial Notícias, vinte e seis na Âncora Editora, que tem, neste momento, mais dois prestes a sair, “Os Homens não Tapam as Orelhas”, em 2ª edição, com prefácio do General Pedro Pezarat Correia, e “Por Caminhos de Pedra Solta”, com prefácio de Helena Roseta. 

Tenho plena consciência, sem que isso me incomode, que estou a descer os últimos degraus de uma vida cheia de trabalho e de afectos. Mas continuo a escrever, tendo sempre no pensamento o monte de projectos que sei que não irei concluir e isso, sim, já me incomoda. E esta é razão da minha pressa, estado de alma que marca o ritmo do meu trabalho. Quero ver publicados dois originais em fase de revisão: “A Professora”, uma história de vida de uma companheira e amiga de há mais de 80 anos, com quem “fundi” a minha, vai para 68, e “Do Laboratório à Cozinha”, que reúne mais de uma centena de experiências culinárias, muitas delas já publicadas na minha página do Facebook.

Durante quarenta e quatro anos, primeiro como aluno, depois como docente e investigador nas Universidades de Lisboa e de Paris, no domínio das rochas sedimentares e dos seus minerais, o laboratório, com recursos à química e à física, foi uma constante na minha vida. 

Quando o limite de idade me arrumou, contra minha vontade, na “prateleira dos reformados e pensionistas”, toda a parafernália laboratorial que, por amor à arte, me entrara no coração, parece ter encontrado continuidade e conforto no espaço da cozinha. Gobelets, provetas e erlenmeyers viraram tachos, panelas e frigideiras; refogados, guisados e estufados tomaram o lugar de sulfatados, reduzidos e oxidados; átomos e iões foram substituídos por bagos de arroz, de ervilha e por feijões; a torneira com água fria e quente é a mesma, os queimadores de gás do fogão passaram a bicos de Bunsen e o forno fez as vezes da estufa. Quero com isto dizer que a cozinha é, por assim dizer, um outro percurso de prazer e, ao mesmo tempo, um escape.

Tenho em mãos o que se deverá intitular “Nós e as Pedras”, uma pesquisa no sentido de mostrar aos meus concidadãos que tudo, mas mesmo tudo, o que nos rodeia, incluindo nós próprios e toda a biodiversidade, tem origem nas pedras, no conceito antigo da palavra, que abrangia as rochas e os minerais. É, talvez, um sonho concluí-lo, mas o desejo de o dar como tal, dá sabor aos meus dias. Há ainda, no horizonte, dar cumprimento a uma incumbência, que consiste em passar a livro toda a documentação escrita e fotográfica existente sobre o Monumento Natural das Pegadas de Dinossáurios de Ourém-Torres Novas e a esperança de a poder cumprir é uma das razões da pressa a que aludi atrás. Finalmente, mais do que um sonho, antes uma deliciosa utopia: “E, assim, o tempo se transformou em palavras”. Acontece que não me seria difícil encontrar situações e pensamentos para concretizar esta ideia, mas…

Todavia, sempre disse, escrevi e mostrei que assim era, que “a utopia é a força que transforma o sonho em realidade".

Lisboa, dia de São João de 2025

A.M. Galopim de Carvalho

Afixado por: José Batista d'Ascenção

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Adaptação dos seres vivos marinhos às altas pressões da profundidade oceânica

No oceano, a 300 metros de profundidade, a pressão é mais de trinta vezes superior à da superfície, uns assustadores 31 kg/cm2. Mas, a profundidade média do oceano ronda os 3500 metros. Uma chumbada caindo para a profundidade levaria talvez duas horas no movimento de descida dessa distância. Noutras zonas desceria muito mais: na fossa das Marianas, no Pacífico, a mesma chumbada pousaria a 10 920 metros abaixo da superfície. Aí, a pressão atinge valores mil vezes superiores à pressão atmosférica.

Porque é que o corpo dos animais que habitam nas profundezas marinhas, alguns deles moles, flácidos ou gelatinosos, não colapsa sujeito às pressões colossais desses habitats? É o caso invulgar do «peixe-diabo-negro», que se apresenta praticamente sem escamas e é bastante gelatinoso (ver figura).

Na realidade, animais grandes e pequenos movimentam-se entre zonas verticais muito diferentes – a maior migração do mundo ascende, todas as noites, do oceano profundo até à superfície -, sujeitando os seus corpos a enormes variações de pressão. A baleia-azul, por exemplo, mergulha até profundidades com pressões tão elevadas, que os seus pulmões, temporariamente, colapsam. Adaptações extraordinárias permitem a esses animais viver sem qualquer dano. As explicações para tal podem não parecer intuitivas. Os motivos residem na constituição particular dos tecidos vivos e nas características e propriedades da matéria.

As moléculas de água constituintes do corpo dos seres marinhos têm a mesma compressibilidade da água oceânica, o que permite as suas funções biológicas. Os animais marinhos não apresentam cavidades de ar (pulmões, bexiga natatória…) susceptíveis de colapsar. Os corpos com tecidos moles ou gelatinosos têm densidades próximas da da água e as pressões internas e externas são igualizadas, permitindo a fisiologia. E certas substâncias ajudam a estabilizar a estrutura das proteínas, as quais desempenham as suas funções metabólicas, pelo que a vida é perfeitamente possível e adaptável, em toda a coluna de água oceânica.

Dados essencialmente colhidos em: «Oceano, o último reduto selvagem», David Attenborough e Collin Butfield. Ed. Temas e Debates. 2025.

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 17 de junho de 2025

A falta que as árvores fazem

Morre-se de calor, e ainda o S. João não chegou. As cidades, desenhadas para a mobilidade automóvel, asfaltadas, empedradas, cimentadas, sem espaço para arvoredo [de que muitas pessoas (supõem que) não gostam, porque lhes faz impressão a queda das folhas no Outono e são alérgicas a pólenes, na Primavera], com edificado compacto, de paredes, superfícies vidradas e telhados à testa do sol, tornam-se infernos escaldantes à hora do meio-dia, ao longo das tardes e pela noite dentro, quando a radiação emana do chão e das estruturas, de volta à atmosfera: e então esturricamos, quais “nacos na pedra”, e “estufamos”, de dia e de noite, ansiando pelo fresco, que só se consegue com o ar condicionado, que faz aumentar o gasto de energia e, coisa curiosa!, contribui para o aquecimento ambiental (o calor é retirado de compartimentos fechados e empurrado para o exterior, mas à custa da energia gasta no processo, que se converte em… mais calor!).

E assim vamos vivendo, colocando-nos cada vez mais no “assador”.

Ora, parte do remédio está em mais árvores, nas florestas, nos jardins e nos arruamentos, mais perto de nós. Ou connosco mais perto das árvores.

E não apenas pela regulação da temperatura.

José Batista d’Ascenção

sábado, 14 de junho de 2025

O azul das minhas hortênsias

É azul azul. Intenso, como eu gosto. Decora a entrada da minha casa, aquele azul. É um azul de boas-vindas, e um azul de «bom dia», quando, de manhã, abrimos a porta. Agora, aqui, na imagem ao lado, é também um azul de saudação a quantos abrirem este texto (com palavras a azul).

A meus olhos é ainda um azul de céu e de mar, de descanso, de serenidade, de beleza e de paz.

Azul e verde. Azul das pétalas e verde das folhas ou vice-versa. Duas cores que nem sempre combinam bem na roupagem das pessoas, mas que casam bem na Natureza, porque a Natureza “sabe” ser bela e sábia na composição das formas, dos sons e das cores.

A cor das flores das hortênsias, também chamadas hidrângeas (porque gostam de água – veja-se como crescem nas ilhas dos Açores), varia com a constituição do solo. Mas a cor que apresentam não depende apenas desse factor. Estas, da minha porta, que eu seleccionei propositadamente de entre outras de cores variadas que cresciam no mesmo local, já eram assim azulinhas, como eu gosto.

Aos meus escassos leitores ofereço a beleza deste azul.

Com um abraço.

José Batista d’Ascenção

terça-feira, 10 de junho de 2025

A (mais) bonita lição do 10 de Junho – por Lídia Jorge

Acabei de ver e ouvir. A nossa actual mais merecedora de um prémio Nobel disse o que devia ter dito, da forma mais autêntica e bela e oportuna, nesta data. Em minha opinião, naturalmente. O que eu gostava que todas as orelhas portuguesas a tivessem escutado, particularmente as dos que estão (ainda) presentes na cerimónia, com destaque para quantos lhe bateram palmas.

Um discurso que também me satisfez foi o do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, pese a imprecisão de chamar «capitão de Abril» ao digno cidadão ilustre António Ramalho Eanes. Uma imprecisão intencional, que o homenageado não deixa de merecer.

Agradeço a Lídia Jorge e ao (nosso omnipresente, mas de profundo saber e muito bons e curtos discursos) Presidente da República (de quem começo a sentir saudades).

Foi compensadora a minha espera pelas suas intervenções.

José Batista d’Ascenção

sábado, 7 de junho de 2025

A curiosidade, a agudeza e a inteligência dos bichos


O que se vê na imagem foram laranjas. E agora são cascas delas. Ou, mais especificamente, meias cascas de cinco laranjas. Correspondem aos últimos frutos de uma árvore que esteve carregadinha até fins de Abril. Deliciosas como nunca comi outras, estas laranjas. Em minha opinião e na de quantos vieram apanhá-las para não se perderem apodrecidas no chão.

Não se pense que foram roedores os bichinhos que, tendo aberto as laranjas de lado, assim como que retirando uma «tampa» circular, acederam artisticamente ao seu conteúdo, sumarento e agradavelmente doce. Foram pássaros.

Só podem ter sido, porque estes «fantasmas» de laranjas estavam na árvore, de porte razoável, nalguns casos a mais de três metros de altura do solo.

Como esculpiram as aves as cavidades nos frutos, tendo deixado só a casca, gostava eu de ter visto. Em duas delas ainda resta qualquer coisa, que mais nenhum pássaro vai aproveitar, porque lhes roubei essa possibilidade para fazer notícia do caso.

A inteligência, enquanto capacidade evolutiva de resolver problemas, não é exclusiva dos humanos, como bem sabemos. Os outros animais fazem-no igualmente, na luta pela sobrevivência, mas, quem sabe, talvez também para se deliciarem e gozarem prazeres que as oportunidades da vida consentem.

E nas plantas poderá, de modo idêntico, ser assim. Elas lutam umas com as outras, no solo e no ar, assim como podem servir-se mutuamente, se há ganho nisso. E têm meios de comunicar, sejam elas da mesma espécie ou de espécies diferentes. Uma comunicação química de que pouco sabemos.

A nossa vantagem, enquanto humanos, é que podemos reflectir sobre isso.

Lições não faltam.

José Batista d’Ascenção

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Bondade de gente antiga

Ao início da tarde, no caminho para a escola, passei pela padaria «Primorosa» (no Largo da Senhora-a-Branca, em Braga), para adquirir uns gramas de fermento (comercial) de padeiro, que é uma pasta que contém um fungo unicelular que usamos para levedar a massa do pão – a levedura Saccharomyces cerevisiae (a mesma que fermenta o mosto de uvas, transformando-o em vinho, e os açúcares do mosto proveniente do malte para produzir cerveja).

Entrei na loja, que estava completamente vazia, àquela hora, e esperei uns segundos até um senhor, já com a sua idade, regressar de salas contíguas. Fiz o pedido, dizendo que era para usar na escola [em experiências de fermentação, precisamente, com o fim de observar a libertação de CO2 e a formação de álcool etílico].

O senhor pesou-me uma quantidade, embrulhou a pasta em papel e colocou-a num saquinho. Entretanto, eu puxara do porta-moedas e perguntei quanto era. O meu servidor disse que não era nada, abrindo-se num sorriso doce e amigo, antes ainda de eu poder dizer-lhe obrigado.

Obrigado, que disse e repeti. Sorri também, agradecido, e saí, deveras bem-disposto.

Braga tem (ainda) muitas pessoas assim: servem bem o que servem e servem-nos a bondade que têm. Isto direi amanhã, nas aulas, aos meus alunos.

Para que também eles se sintam obrigados àquele amigo.

José Batista d’Ascenção